Proposta do Senador Rodrigo Pacheco para a dívida estadual: uma derrama sem os Inconfidentes

O Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados – PROPAG, proposto pelo Senador Rodrigo Pacheco – PSD/MG por meio do PLP 121/2024, conseguiu a proeza de promover uma rara e surpreendente convergência entre forças progressistas e de esquerda e setores conservadores neoliberais em torno das medidas a serem adotadas para fazer face ao persistente e complexo problema do sobre-endividamento dos governos estaduais, notadamente os de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Esse inusitado consenso estabelecido sobre tema tão controverso, que envolve aspectos polêmicos, como os relacionados ao padrão de financiamento do gasto público e às atribuições socioeconômicas que devem ser designadas ao Estado, suscita diversas indagações. A principal delas diz respeito aos fatores que levaram os partidos progressistas e de esquerda, bem como organizações sindicais, a abandonarem posições históricas em favor de outras orientações contra as quais sempre se opuseram – entre as quais a desestatização e a utilização do controle acionário de empresas estatais para o pagamento de obrigações financeiras ou a liquidação de dívidas.

Tal inflexão na posição estratégica assumida historicamente pelo campo progressistas e de esquerda foi condicionada, certamente, por diversas razões, tanto de natureza política, quanto de cunho econômico. Uma das principais razões a ser destacada tem como base a persuasiva ideia de que o PROPAG cria as condições necessárias para o efetivo equacionamento do estrangulamento financeiro dos estados, sem inviabilizar a máquina governamental, mantendo as capacidades institucionais e econômicas desses entes federados de implementar políticas públicas. Sob tal perspectiva, o PROPAG seria a alternativa mais adequada ao restritivo Regime de Recuperação Fiscal – RRF, criado pela Lei Complementar nº 159/2017, que padeceria de uma dupla inconsistência: além de não resolver o problema do endividamento, provocaria o desmonte da administração pública, ao promover a privatização e o arrocho fiscal dos estados.

O argumento principal que sustenta essa visão é que, ao contrário do RRF, o PROPAG cria mecanismos que permitem o estado abater antecipadamente parte de sua dívida, reduzindo o estoque do passivo e, principalmente, os juros a serem pagos na operação de refinanciamento. Assim, o PROPAG conseguiria compatibilizar as obrigações financeiras à capacidade de pagamento dos governos estaduais, permitindo que a dívida seja efetivamente liquidada, sem comprometer a ação e as estruturas da administração pública.

De fato, o PROPAG estabelece dispositivos que possibilitam a eliminação integral dos juros concomitantemente à redução da dívida, mediante o pagamento antecipado de parte de seu estoque. Contudo, tais dispositivos criados pelo PROPAG não são neutros em termos patrimoniais, orçamentários e financeiros, mas engendram processos que alteram profundamente o contexto econômico e institucional das administrações públicas estaduais. Como será demonstrado na sequência deste artigo, além de induzir à desestatização e ao ajuste fiscal, o PROPAG impõe um substancial e prolongado encargo financeiro para os estados, com o objetivo estrito de permitir a liquidação da onerosa dívida detida junto à União.

O PROPAG prevê a criação do denominado Regime Especial de Revisão dos Termos da Dívida, pelo qual é estabelecido novo refinanciamento dos passivos estaduais detidos junto à União, sendo que o principal débito se refere às operações de crédito contratadas ainda no Governo FHC – Fernando Henrique Cardoso, ao amparo da Lei nº 9.496/1997. Pelas normas propostas em análise no Congresso Nacional, o estoque das dívidas abrangidas pelo PROPAG poderá ser refinanciado em até 360 parcelas mensais e consecutivas (30 anos), calculadas pela Tabela Price. Os encargos incidentes sobre cada prestação correspondem à taxa de juros de até 2% ao ano, acrescida da variação mensal do IPCA, sendo acumulados pelo regime de capitalização composta. Mas duas situações previstas permitem a eliminação dos juros, concomitantemente com a redução do estoque da dívida. Para tanto, o Governo Estadual que ingressar no PROPAG precisa amortizar antecipadamente, pelo menos, 10% ou 20% do estoque da dívida a ser refinanciada.

A Tabela 1 apresenta uma estimativa do impacto financeiro do refinanciamento da dívida de Minas Gerais no âmbito do PROPAG, tendo como referência os passivos estaduais relacionados à Lei nº 9.496/1997 e às Leis Complementares nº 178/2021 e 159/2017, cujo estoque combinado somou R$ 151,35 bilhões em junho de 2024, de acordo com os dados disponíveis mais recentes. Foram consideradas duas situações possíveis, nas quais o Governo Estadual teria conseguido eliminar a incidência dos juros, mediante o abatimento prévio de 10% (R$ 15,13 bilhões) ou 20% (R$ 30,27 bilhões) do estoque da dívida, refinanciando por 30 anos o saldo remanescente de 90% (R$ 136,22 bilhões) e 80% (R$ 121,08 bilhões), respectivamente. As estimativas levaram em conta três cenários prospectivos de inflação (IPCA): “Otimista” (3% ao ano), “Moderado” (4% ao ano) e “Realista” (5% ao ano).

É possível constatar que, em todos os cenários das duas situações examinadas, o esforço financeiro exigido do Governo Estadual para efetivamente quitar a dívida ao final da operação de refinanciamento é bastante relevante, mesmo com a eliminação da incidência dos juros.

Na situação em que 10% do estoque da dívida é amortizado antecipadamente, o valor total dispendido pelo Estado varia de mais de R$ 234 bilhões (Cenário Otimista) a quase R$ 324 bilhões (Cenário Realista), representando um desembolso que excederia o valor da dívida refinanciada entre R$ 83 bilhões e R$ 172 bilhões, a valor presente, o que corresponderia a 55% e a 114% do saldo devedor original, respectivamente. No Cenário Moderado, o pagamento total no âmbito do PROPAG também seria substancial: R$ 274,4 bilhões, superando a dívida refinanciada em mais de R$ 123 bilhões, o equivalente a 81% do saldo devedor original. O desembolso anual exigido do Estado para liquidar a dívida ao final da operação superaria o valor médio de R$ 7 bilhões, podendo chegar a mais de R$ 10 bilhões. O valor médio das prestações mensais ficaria acima dos R$ 600 milhões, podendo alcançar montante superior a R$ 850 milhões ao mês.

Na outra situação possível, em que uma parcela de 20% da dívida é quitada antecipadamente, o impacto financeiro seria atenuado, mas apenas marginalmente. Basta verificar que o pagamento total varia de R$ 225 bilhões (Cenário Otimista) a mais de R$ 304 bilhões (Cenário Realista), resultando em um dispêndio excedentário entre cerca de R$ 74 bilhões e R$ 153 bilhões, o que corresponderia a 49% e a mais de 100% do saldo devedor original, respectivamente. No Cenário Moderado, o total pago pelo estado ao longo de 30 anos somaria cerca de R$ 261 bilhões, gerando gasto de R$ 109 bilhões acima do saldo devedor original, o equivalente a 72% da dívida refinanciada. Cabe notar que, nessa situação, embora o pagamento à vista tenha dobrado, os desembolsos médios anuais permaneceriam relevantes, situando-se acima dos R$ 6 bilhões, podendo atingir mais de R$ 9 bilhões, em razão de prestações médias mensais entre R$ 541 milhões e R$ 762 milhões.

Esse relevante fluxo de obrigações financeiras de longo prazo que pode vir a ser criado pelo PROPAG, torna-se ainda mais crítico, se for levada em consideração a trajetória recente do endividamento estadual, que já drenou volume significativo de recursos do Estado, sem que o problema da dívida pública conseguisse ser superado. De fato, os dados disponíveis mostram que, entre 2000 e 2023, os gastos empenhados pelo Governo de Minas Gerais para arcar com os serviços da dívida somaram R$ 189,6 bilhões, em valores reais a preços de 2023, deflacionados pelo IPCA. Isso significou um dispêndio médio com a dívida da ordem de R$ 8 bilhões ao ano. A despeito desse grande esforço financeiro realizado pelo Estado, o estoque da dívida interna, também a preços de 2023 e deflacionado pelo IPCA, subiu de R$ 98,9 bilhões para R$ 151,1 bilhões no mesmo período, acumulando crescimento real de cerca de 53%. O PROPAG vai, portanto, prolongar temporalmente esse esforço financeiro exigido do Estado, mantendo parte importante do orçamento público de Minas Gerais comprometida com a dívida por mais 30 anos.

Um aspecto importante, que não pode ser perdido de vista, é que esse encargo financeiro de longo prazo imposto pelo PROPAG ao Governo de Minas Gerais não consiste em um processo isolado, mas se vincula à reforma patrimonial da administração pública estadual e exige, ao mesmo tempo, uma compulsória disciplina orçamentária. Por isso, o PROPAG induz à desestatização no plano estadual e obriga os entes federados, que ingressarem no programa, implementarem um regime fiscal restritivo similar ao vigente no âmbito da União (Lei Complementar nº 200/2023).

A desestatização no plano estadual será induzida pelo PROPAG por meio da permissão dada à utilização de um amplo conjunto de patrimônio público de propriedade dos estados para a amortização antecipada da dívida a ser refinanciada, abrangendo, além de recursos monetários, o controle de estatais, ativos financeiros diversos e um extenso leque de bens públicos. Pelas normas previstas no PROPAG, o encargo financeiro do refinanciamento será tanto menor quanto maior for a amortização antecipada da dívida, o que estimulará os estados a utilizarem o maior volume possível de seu patrimônio para rebaixar o saldo devedor, impulsionando a desestatização, a ser realizada com a transferência maciça de ativos reais e financeiros para a União, entre os quais ganha relevância o controle de estatais.

Esse processo de desestatização terá efeitos desestruturantes e, no caso de Minas Gerais, seu impacto será particularmente de grande extensão, tendo em vista o papel estratégico desempenhado pelas estatais mineiras. Basta verificar que, entre 2005 e 2024, essas empresas investiram, conjuntamente, valor médio anual de R$ 10,4 bilhões (a preços de julho de 2024), sendo responsáveis por percentual médio de 60% do investimento público estadual realizado anualmente em Minas Gerais.

Nesse sentido, a federalização das estatais mineiras, com a finalidade de abater antecipadamente parcela da dívida detida junto à União, implicará na perda do poder decisório do governo estadual sobre o programa de investimentos dessas empresas. Ou seja, o Governo Estadual não poderá mais influenciar a definição do montante e a alocação setorial e regional dos investimentos. Assim, do ponto de vista da administração estadual, a federalização terá efeito prático e imediato idêntico ao da privatização, implicando na fragilização da capacidade do estado de formular, financiar e implementar políticas públicas, o que afetará de forma sistêmica e estrutural as perspectivas de desenvolvimento socioeconômico de Minas Gerais no médio e no longo prazo.

O PROPAG determina que os governos estaduais que ingressarem no programa deverão adotar obrigatoriamente regras fiscais para controlar as despesas primárias, atrelando seu crescimento real ao desempenho das receitas primárias e à trajetória do resultado primário. A ideia é limitar a elevação das despesas primárias à variação do IPCA, acrescida de até 70% do aumento real verificado nas receitas primárias.

Há uma grande incerteza em relação ao rigor da disciplina orçamentária que será cobrada dos estados que aderirem ao PROPAG, tendo em vista que, pelas normas prevista no PLP 121/2024, caberá ao governo federal definir os parâmetros desse novo regime fiscal, notadamente os critérios de apuração dos índices de inflação, das receitas, das despesas e do resultado primário. A depender desses critérios de mensuração de variáveis-chave, o novo regime fiscal a ser obrigatoriamente atendido pelos estados poderá ser mais ou menos restritivo.

No final século passado, o Governo Federal promoveu a última operação de refinanciamento de grande escala das dívidas estaduais, por meio da Lei nº 9.496/1997. A iniciativa, que induziu a reestruturação patrimonial e financeira dos estados, foi apresentada como a solução definitiva para o problema crônico do endividamento e dos desequilíbrios fiscais desses entes federados. Os resultados alcançados, contudo, foram frustrantes: embora tenham sido drenados recursos vultosos dos estados, os impasses financeiros e orçamentários persistiram.

O caso de Minas Gerais é paradigmático. Em 1998, o estoque da dívida estadual refinanciada pela União ao amparo da Lei nº 9.496/1997 correspondia a R$ 14,82 bilhões. Entre 1998 e 2023, o Governo de Minas Gerais desembolsou, em valores correntes, R$ 46,28 bilhões no pagamento dos serviços desse passivo. A despeito desse dispêndio substancial, o estoque da dívida refinanciada pela União subiu para R$ 92,92 bilhões no final do ano passado – montante que supera em mais de seis vezes o saldo devedor original, em termos nominais.

Agora, quase três décadas depois, outro programa de refinanciamento, o PROPAG, é apresentado como a solução definitiva para o problema do endividamento estadual. Tal programa, contudo, replica o mesmo modelo fracassado das operações anteriores e se estrutura, principalmente, em torno do revigoramento e da criação de velhos e novos mecanismos de transferências permanentes e maciças de recursos monetários, bens públicos e ativos financeiro e reais de propriedade dos estados para os agentes detentores da dívida pública, com a mediação da União.

Pode-se dizer, então, que uma nova derrama está em preparação no país e, em Minas Gerais, mas, desta vez, sem os Inconfidentes – ou seja, sem que haja uma oposição minimamente organizada e disposta a impor algum tipo de resistência para conter ou, pelo menos, atenuar os efeitos danosos do processo de desestruturação da administração pública estadual que está prestes a ser colocado novamente em movimento.