Breve reflexão sobre a trajetória da participação política

Às vésperas de mais uma eleição municipal, o tema da participação na gestão municipal retorna como um ponto programático para os futuros prefeitos. Em geral, o tema aparece de modo retórico na fala dos candidatos, que falam em “maior participação os cidadãos” no governo. Entretanto, o que realmente interessa como participação são as possibilidades de “democracia participativa”, que surge como “a possibilidade de intervenção direta dos cidadãos nos procedimentos de tomada de decisão e de controle do exercício do Poder”, em complementação à dinâmica estrita da “democracia representativa”. A reflexão que a conjuntura impõe é como (re) ativar a participação cidadã como condição de enfrentamento das transformações que a esfera pública vem passando.

O exercício da democracia participativa iniciou-se no Brasil logo no início da Nova República com a implementação de iniciativas de Orçamento Participativo – OP em diversas Administrações eleitas a partir de 1988. No primeiro período de 89 a 92, segundo o censo “Brazilian Participatory Budgeting Census”, foram 11 (onze) experiências. Entre 2001/2004, elas chegaram ao auge com 129, ainda que os números sejam controversos, uma vez que não tivemos, ao longo desses anos, registros cuidadosos.

A novidade que o Orçamento Participativo representou naquele momento levou a que ele se tornasse a base do discurso da “democracia participativa”. A iniciativa do OP pôs por terra a lógica consultiva do ‘planejamento participativo’ promovido por alguns grupos políticos no final dos anos 70, já que a natureza do OP, por definição, foi deliberativa. Ou seja, ao invés apenas da interlocução entre cidadãos e Poder constituído sobre problemas e iniciativas, o OP sempre visou a definição de empreendimentos e recursos para sua viabilização, com sua inclusão na Lei do Orçamento Anual.

O OP cativou corações e mentes de uma geração, mas não se consolidou como alternativa de “democracia participativa”. Das mais de 5.000 administrações municipais, em seu auge, de acordo com a Rede Brasileira de Orçamento Participativo”, em 2013, foram 353 experiências de OP. Em 2012, a pesquisa identificou não mais do que 99 municípios realizando o Orçamento Participativo. Vale dizer que as administrações conquistadas pelo Partido dos Trabalhadores ao longo desses anos não conferiram à iniciativa tratamento político central.  Não se registrou no âmbito do partido que as promoveu também nesses anos um debate estruturado sobre o caráter dessas iniciativas, seu potencial para qualificar o chamado “modo petista de governar”, a eventual relevância de sua apropriação para se avançar na democratização do país.

A democracia participativa após o fim dos Governos Militares não se limitou ao OP. Paralelamente, logo após a promulgação da Constituição de 1988, iniciou-se o processo de disseminação de conselhos de políticas públicas, que preencheram o papel de representação do cidadão, das entidades e dos trabalhadores dos diversos setores na formulação, implementação e avaliação de diversas políticas. Na evolução dessas práticas, adensaram-se conferências periódicas e a formulação e monitoramento de planos setoriais, que fortaleceram essas instâncias participativas. Essa política avançou enormemente durante os Governos Lula, quando foram criados 41 novos conselhos nacionais, ao contrário do Governo Fernando Cardoso que criou 19 (dezenove).

Ainda que haja muito a se discutir sobre a natureza política que essas instâncias assumiram ao longo dos anos, não resta dúvida de que elas vêm sendo instrumentos de efetivo exercício de “democracia participativa”. Elas passaram a proporcionar efetivamente que a sociedade participe organizada e diretamente do planejamento, da aprovação de planos de aplicação de recursos e da avaliação de seus resultados, de praticamente a totalidade dos recursos públicos destinados a políticas sociais e urbanas, considerando-se o peso orçamentário das políticas de saúde, educação, assistência social, ambiental de criança e adolescente, primeira infância, cultura, segurança pública e políticas urbanas. Basta lembrar o papel do Conselho Nacional de Saúde – CNS e do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS na estruturação e operacionalização do Sistema Único de Saúde – SUS e do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Além disso, essas instâncias são interlocutoras privilegiadas junto ao parlamento em todas as esferas, federal, estadual e municipal.

O tema dos conselhos já está naturalizado, consolidado na esfera pública brasileira. Mesmo com a tentativa do Governo Bolsonaro de acabar com várias dessas instâncias (Decreto nº 9.7509, de 11 de abril de 2019), os pilares estruturantes da gestão de políticas públicas por meio dos conselhos e fundos sobreviveram, após o fim do mandato. Entretanto, não resta dúvida de que a normalização da vida dessas instâncias contribui para anuviar o relativo formalismo participativo em que elas se cristalizaram, perdendo, no mínimo, sua vitalidade enquanto instrumentos de democracia participativa. Com certeza, em qualquer roda de conversa com lideranças políticas e populares, a maioria irá considerar insuficiente ou ineficiente, ou ineficaz alguma dimensão desse arcabouço institucional de “democracia participativa”.

No período de redemocratização, também verificamos a ampliação direta da interlocução do Poder Público com as entidades da sociedade civil. Esta participação se conjuga com a própria emergência de organizações da sociedade civil – OSC. Uma parte importante dessas instituições já fazia parte da esfera pública brasileira como as associações de bairro, sindicatos e instituições de assistência social. Entretanto, uma grande parte dessas OSC despontou, certamente no período pós Constituição Cidadã estimuladas por seu princípio participativo, por iniciativa de grupos que acreditavam poder constituir-se em alternativa a problemas sociais específicos, assim como para a promoção do controle de temas políticos e sociais específicos.

Este ambiente foi incentivado durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, com a Reforma Gerencial do Estado promovida em 1995, quando foram definidas em lei e, assim, estabelecidas as primeiras organizações sociais destinadas a executar no setor público não-estatal atividades sociais e científicas que o Estado desejava financiar mas não  queria executar. Em 2014, esse ambiente ganharia um arcabouço institucional mais consistente com o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, regulamentado pela Lei nº 13.019/2014.

A participação proporcionada pela interlocução com as organizações da sociedade civil, embora relevante principalmente para a governabilidade dos governos em qual esfera, é sempre difuso, complexo e tangente ao clientelismo. Sua relevância foi reconhecida expressamente desde o primeiro Governo Lula, que criou (Lei nº 11.204/2005) a Secretaria de Relações Institucionais – SRI, junto à Presidência da República, que cuidou da coordenação e funcionamento do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES, onde entidades representativas do país puderam atuar diretamente na formulação de proposições. No contexto dos governos municipais, essa interlocução é, em geral, feita a partir da Secretaria de Governo e também no âmbito doss diversos conselhos municipais, como Conselho da Criança e Adolescente e Conselho de Meio Ambiente, Conselho de Políticas Urbanas

Associado a esse cenário de “democracia participativa”, vem acontecendo, na última década, iniciativas de promoção da participação política por meio de iniciativas digitais, que já e chada de ‘democracia digital’. Além das consultas públicas instituídas sobretudo pelo Poder Legislativo no âmbito de todas as esferas nacionais, possibilitando a manifestação cidadão em plataformas digitais, o Poder Executivo em várias oportunidades buscou oferecer alternativas nesse ambiente. Em 2006, o Governo de Fernando Pimentel promoveu pioneiramente em Belo Horizonte, o Orçamento Participativo Digital, que possibilitou a escolha de obras para execução, envolvendo 296.320 participações. Outras experiências ocorreram no país, desde então. No Governo Dilma Roussef foi criado o “Dialoga, Brasil!”, para interação da população com o governo. No atual Governo Lula, é disponibilizada o portal “Participa+Brasil”, em que são oferecidos canais para participar de consultas públicas, audiências públicas, apresentação de opiniões e acompanhamento de colegiados.

O Governo Lula realizou também Plano Plurianual Participativo Digital em 2023, que contou com plenárias estaduais pelo país, após a coleta de propostas. Atingiu-se a marca de 1.419.729 de participantes cadastrados, que enviaram 8.254 propostas, votadas por 1.529.826 participantes. Acessaram a plataforma do programa 4.087.540 cidadãos.

A democracia na era digital é um grande desafio. Embora a conexão com o cidadão passa a ser facilitada pelas soluções digitais, permitindo levar conteúdos diretamente a todos e aferir opiniões diretamente sobre todo tipo de tema, a interlocução que propiciam apresenta qualidade distinta daquela proporcionada pela interação presencial. Nesta, a necessária validação das pretensões de validade que os pactos públicos demandam contam a possibilidade de construção interativa do contraditório de argumentações. No caso das experiências digitais até o presente, apresentam limitações para tanto, destinando-se a escolhas individuais entre pretensões de validade selecionadas.

A partir das breves considerações acima, podemos dizer que as evidências históricas são bastante consistentes para considerarmos que a participação política na formulação e acompanhamento de políticas no país encontra-se fortemente ancorada na esfera pública. Embora o parlamento esteja visivelmente atuando orientado por políticas localistas e, assim, hegemonizando a legitimação das políticas públicas, as forças da sociedade civil, cidadão e organizações sociais em geral, são, sem sombra de dúvida, atores relevantes no contexto de formulação e avaliação dessas políticas. Certamente, esse protagonismo não tem sido suficiente para balancear a direção de desenvolvimento e democratização que o país precisa. Qual participação precisamos, eis a questão que a sociedade brasileira no próximo período precisa urgentemente responder.