As almas entre Nelson Freire e Irani Campos

Era agosto de 1983. Estávamos indo a São Bernardo Campo, para participar nos estúdios do extinto Estúdio Vera Cruz, do Primeiro Congresso Nacional da Classe Trabalhadora – CONCLAT, onde seria fundada a Central Única dos Trabalhadores – CUT. No ônibus, a certa altura, Virgílio Guimarães que, na época, era responsável pelo Escritório do DIEESE em Minas Gerais, começa a contar o que tinha acontecido com Irani Campos, militante histórico, que participou da Comando Nacional de Libertação Nacional – COLINA e sindicalista da FASUBRA – Federação Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Brasileiras, que acompanhou conosco em silêncio o detalhado relato.

Era 1967. Irani, na época militante procurado pela Ditadura Militar, estava na Cidade do Rio de Janeiro. Foi chamado à Belo Horizonte. Preocupado com os riscos, segundo Virgílio, programou passar o menor tempo possível exposto. Chegou no último momento de embarque à Rodoviária. Já não tinha mais passagem para aquele horário. Subornou o caixa para lhe vender a passagem do Departamento de Estradas de Rodagem – DER, aquela poltrona vazia que ficava sempre disponível para alguém da fiscalização e outros favores. Entrou logo no ônibus no seu lugar que ficava no meio do veículo. Alguns instantes depois, chegou uma senhora pedindo para ele trocar de lugar.

- Será que o senhor podia trocar é que eu estou com duas crianças. E uma é mais nova prá viajar sozinha e está lá na frente.

Irani focado em não se expor atendeu imediatamente o pedido e levantou-se, se dirigindo para a frente do ônibus, quando a senhora o interrompeu.

-Será que o senhor não se incomodaria de ficar lá atrás onde está meu outro filho?
-Sem problema, respondeu Irani.
-Onde é o assento?
-É o último no fundo, na janela do lado do motorista.

Sem pestanejar, Irani foi para o fundo do ônibus, sem pensar que ficaria do lado do banheiro, muito usado naquela época que todos vomitavam no trecho da serra.

Sentou-se e, logo que o ônibus, saiu, apagou de cansaço.

Acontece que o ônibus caiu no Viaduto das Almas de 80 metros de altura, que, ao longo de seus 54 anos de vida útil, chegou a acumular, pelo menos, 200 mortes. Era de 13 de setembro de 1969. Morreram 13 passageiros. Sobreviveram três, dentre eles, Irani e Nelson Freire, o nosso famoso pianista de Boa Esperança-MG, com, então, 22 anos. No acidente, morreram os pais de Freire, que o acompanhavam para um concerto em Belo Horizonte.

Na verdade, Nelson Freire não sofreu ferimentos no acidente. Já Irani, contou Virgílio, só se lembra de sentir um friozinho na barriga no momento da queda e veio a acordar no hospital alguns dias depois, completamente arrebentado.

E foi acordado pelos policiais do DOPS com voz de prisão:

- O senhor ‘teje’ preso! Está todo arrebentado e vai lamentar que não foi junto com os demais no Viaduto das Almas.
-Que nada, meu caro! Pelo que eu estou vendo, nasci de novo.

Bem, como reza o ditado: o povo aumenta, mas não inventa! Mas, com certeza, as almas uniram Irani e Nelson Freire para sempre…