Na quinta-feira, dia 02 de junho, aconteceu o Dia Livre de Impostos em diversos estados do país, organizado pela Câmara de Dirigentes Lojistas Jovem – CDL Jovem, em que os empresários comercializaram produtos sem tributação. A data foi divulgada como uma oportunidade para compras mais baratas, acompanhada da complacência dos meios de comunicação, quando não, vez ou outra, com justificativas sobre a suposta alta carga tributária no país. No entanto, não há como contemporizar: o ‘Dia Livre de Impostos’ é um grande disparate, na tradução literal do léxico, uma ação contrária à razão, à sensatez, ao bom senso, um absurdo, um desatino, um despropósito, uma tolice, e, na síntese da vida pública, um dia de agressão à cidadania.
Promoção do ‘dia sem impostos’ atinge Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição
Trata-se de uma campanha deseducativa, que produz uma percepção distorcida da realidade política, econômica e social e alimenta comportamentos demolidores dos fundamentos da esfera pública. Campanhas desse tipo, como o próprio ‘Impostômetro‘ patrocinado pela Associação Comercial de São Paulo, deformam a convivência política e social, porque são vazios de propostas para o enfrentamento dos problemas, que eventualmente se encontram submersos na insatisfação que as movem, e porque estimulam uma desobediência civil, que atinge frontalmente a consecução dos Direitos e Garantias Fundamentais (Título II da Constituição Federal de 1988). É insustentável qualquer argumentação que defenda a venda de produtos e serviços a preços menores, descontados os tributos, como iniciativa capaz de contribuir para qualquer tipo de consciência sobre a carga ou estrutura tributária brasileira, como, por exemplo, sobre a regressividade da carga tributária, que recolhe mais tributos de quem ganha menos, e de diversos outros problemas da nossa estrutura tributária. Ao contrário, desperta uma indignação difusa do cidadão-consumidor– a maioria deles de baixa renda e, no contexto do consumo, legitimamente em busca de menores preços para satisfazer suas necessidades dentro de sua renda limitada. Uma indignação que leva a se considerar inadvertidamente o Estado constituído, os governos, enquanto cobradores de um suposto sobrepreço indevido, que prejudicaria a sua qualidade de vida. Leva a interpretações ilusórias, aliás, como as comparações enganosas repetidas incansavelmente pela narrativa do Impostômetro, que enumeram número de cestas básicas, unidades de carro Honda Civic, Jeep Renegade, apartamentos no Morumbi em São Paulo e outras estultices mais, como alternativas possíveis ao recurso público arrecadado!
Não se constroem as condições para o desenvolvimento e a inclusão social, inclusive para a própria dinâmica da dita iniciativa privada, sem que cada cidadão dê contribuição de parte de sua renda e/ou de sua riqueza, de forma justa, para que tais condições sejam viabilizadas. A vida em sociedade, as condições para se produzir e se viver comumente em um território, dispondo de condições comuns, demanda a existência de um Estado, de uma Administração Pública, nos níveis que for necessário, capazes de produzir os serviços e investimentos necessários definidos e implementados a partir da dinâmica do Estado Democrático de Direito. Para tanto, precisa de recursos para funcionar e, portanto, depende do pagamento de tributos pelo cidadão.
Esse fundamento basilar está vivo na agenda atual do país. No ‘dia sem impostos‘, gasolina foi vendida sem os impostos das diversas esferas públicas por cerca de R$ 4,85/litro, quando o normal seria algo em torno de R$ 7,40. Enquanto se estimula o cidadão a tal non sense, o Projeto de Lei Complementar, PLP nº 18/2022, recém aprovado pela Câmara de Deputados, reduzindo a alíquota do ICMS sobre combustíveis para 17% e de outros produtos, uma vez ratificado Senado Federal, causará, segundo estudo divulgado pelo movimento Todos pela Educação, a redução de R$ 19,2 bilhões dos fundos estaduais (FUNDEB), que financiam a Educação. O montante equivale aproximadamente a todo orçamento anual da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais, cuja rede tem mais de 2 milhões de alunos! Ou seja, a possível redução dos impostos sobre combustíveis irá levar à perda de parcela expressiva do financiamento de uma política importantíssima para a sociedade brasileira. Não há dúvida: qualquer redução de tributos implica inexoravelmente na redução do dinheiro disponível no setor público e, consequentemente, dos serviços públicos como saúde, educação, segurança pública, estrutura viária, proteção ao meio ambiente, promoção do emprego e, assim por diante, ou na impossibilidade de sua ampliação.
Alíquota sobre gasolina e diesel no Brasil é muito menor do que em países da OCDE
No caso do preço dos combustíveis, diante do desgoverno na administração dos efeitos da variação do dólar sobre o preço do petróleo política, o Governo Bolsonaro tem estimulado a exposição da alíquota do ICMS que incide sobre os derivados, como se ela, por ser alta, fosse a causa de todos os males. Trata-se de uma afirmação falsa em vários sentidos, um deles, o estritamente tributário. Conforme mostra Nota Técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, que analisa estudo da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico sobre o sistema tributário de seus países, em busca de parâmetros para a reforma tributária no país, a média das alíquotas dos impostos sobre consumo de gasolina no Brasil é de 36,8% (veja Gráfico 1), percentual bem abaixo do praticado nos países da OCDE, cuja média é de 52,6%, havendo países que praticam alíquotas mais rigorosas sobre o preço final como Portugal (61,8%), França (62,5%) e Reino Unido (63,1%), na contramão dos países latino-americanos analisados, onde a média é de 30,4%. Para o diesel, a realidade é similar. Enquanto, em média, na OCDE, a alíquota é de 47,3%, chegando a 59,8% na Itália e 60,7% no Reino Unido, no Brasil, ela é menos da metade (!) desses países (21,0%), e fica um pouco acima do que vigora nos Estados Unidos (20,1%) e na América Latina (19,3%). No caso do cigarro, que é considerado um problema de saúde pública em todo o planeta, as alíquotas tributárias são muito próximas, embora a vigente no Brasil (71,0%) esteja abaixo da média da OCDE (75,9%), mas ligeiramente acima da América Latina (70,2%).
Além disso, os combustíveis (gasolina, diesel, querosene de aviação, álcool, GNV) de modo geral representam a maior parcela da receita de ICMS dos Estados e, por conseguinte, dos municípios. Em Minas Gerais, 21,7% da receita total de ICMS advém de combustíveis, enquanto, em alguns estados, essa participação chega a 25%. Reduzir a alíquota nesse caso, atingirá diretamente a principal base de incidência da principal receita que Estados dispõem e, consequentemente, a principal capacidade de financiamento das políticas pelos entes.
Tais manifestações se apoiam fundamentalmente na alegação de que o Estado Brasileiro praticaria uma alta carga tributária. Novamente, essa é uma afirmação improcedente. Na mesma Nota Técnica, o IPEA destaca que a carga tributária média (veja Gráfico 2) de 17 países de economias avançadas da OCDE (35,3%) é superior às dos cinco países latino-americanos analisados (23,8%), e próxima à carga tributária brasileira (33,1%, dado de 2019, que, em 2021, passou a 33,9%), a qual, mesmo assim, encontra-se abaixo daqueles países, que, inquestionavelmente, possuem infraestrutura para o desenvolvimento e políticas de proteção social mais robustas do que a brasileira. Acima da média, alguns países se destacam. Na França, a carga tributária total atinge 44,9% do PIB-Produto Interno Bruto; Bélgica, 42,8%; na Itália, 42,4%; na Alemanha, 38,6%; e em Portugal, 34,5%.
Custo operacional para pagamento de tributos é alto
Outra crítica apresentada pelos empresários defensores da prática do dia livre de impostos refere-se ao custo para a operacionalização da obrigação tributária, ao ônus administrativo relacionado com o pagamento de impostos e contribuições e processos pós-declaratórios (postfiling). De fato, como mostra estudo do Banco Mundial, Doing Business Subnacional Brasil 2021, comparando o ambiente de negócios para empresas nacionais em 27 localidades brasileiras com o de outras 190 economias, o Brasil possui um dos sistemas tributários mais complexos do mundo.
Embora os tributos sejam declarados e pagos on-line, as empresas enfrentam vários obstáculos para cumprir com suas obrigações. Dentre os 26 (vinte e seis) Estados e o Distrito Federal, o estudo calcula que as empresas despendem entre 1.483 e 1.501 horas por ano para preparar, declarar e pagar tributos, mais do que qualquer outro país. O tempo equivale a cerca de 2 (dois) meses de atividades burocrático-legais. Nos países de alta renda da OCDE, o tempo médio gasto para a quitação dos tributos situa-se em torno de 150 horas/ano. Na Argentina, é de pouco mais de 300 h/a e, em média, na América Latina, cerca de 320 h/a. Na China e em Hong Kong, o tempo é de apenas 40 horas/ano.
Bem, após todo esse azáfama para se por de lado essa pachorra de ’dia livre de impostos’ é preciso ir em busca de bonanças. Sem sombra de dúvida, o sistema tributário brasileiro precisa urgentemente ser reformulado, por inúmeras razões, que vão desde a redução do custo operacional da obrigação tributária, passando pela reconstrução da capacidade tributária, sobretudo, dos Estados e, certamente, considerando-se a necessidade de impor à arquitetura do sistema o princípio da progressividade. Nessa perspectiva, vale a sabedoria do provérbio chinês:
“Ao invés de amaldiçoar a escuridão, acendamos uma vela!”