Proposta do Senador Rodrigo Pacheco para a dívida estadual: novo ciclo de desestatização

A proposta elaborada pelo Senador Rodrigo Pacheco – PSD para refinanciar os passivos estaduais junto à União, denominada de Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados – PROPAG, vai avançando rapidamente no Congresso Nacional. Aprovado quase que, por unanimidade, no Senado Federal, em 14 de agosto último, o PROPAG será agora apreciado pela Câmara dos Deputados, antes de ir à sanção do Executivo.

Tudo indica que a tramitação na Câmara dos Deputados também será abreviada e sem percalços, pois o PROPAG, depois de ter sido chancelado pelo Governo Lula, conseguiu estabelecer um raro e inesperado consenso entre as forças políticas de esquerda e os setores neoliberais em torno de um tema reconhecidamente controverso e complexo, que diz respeito ao estrangulamento financeiro dos estados e, mais ainda, ao estrutural e persistente sobre-endividamento de alguns governos estaduais, notadamente Minas Gerais, Rio de janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Essa convergência entre forças políticas antagônicas torna-se ainda mais surpreendente e exótica, se for levado em conta que o PROPAG, seguindo o modelo de outras operações federais de dívidas subnacionais, induz à desestatização no plano estadual.

De fato, o PROPAG estimula um processo de desestatização bastante amplo no âmbito dos estados. Isso porque o refinanciamento que proporciona, com prazo de até 30 anos, pode ser sem incidência de juros, caso o governo estadual consiga amortizar antecipadamente pelo menos 20% dos passivos elegíveis pelo programa por meio da transferência, à União, do controle acionário de estatais e de um conjunto diversificado de ativos financeiros e bens públicos de sua propriedade, dentre outros mecanismos.

Nesse aspecto, vale notar, o PROPAG não é tão inovador como argumentam alguns atores políticos e analistas, pois a Lei nº 9.496/1997, que estabeleceu a última operação de refinanciamento de grande escala das dívidas estaduais, também promoveu processo similar de desestatização, tanto por meio de privatizações diretas quanto pela federalização de empresas e ativos controlados pelos estados para posterior privatização.

Entre 1996 e 2002, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, além da venda de participações acionárias relevantes em estatais estaduais, foram privatizadas 40 empresas controladas pelos estados: 20 companhias de energia elétrica, quatro distribuidoras de gás natural, oito instituições financeiras, 5 operadoras de sistemas de transporte, duas de saneamento básico e uma de telefonia. Foi apurado montante total de US$ 34,7 bilhões, utilizado integralmente na amortização da dívida dos estados. Esses números evidenciam o fracasso do programa de refinanciamento vinculado à desestatização levado a cabo no Governo FHC, pois, embora tenha liquidado um volumoso patrimônio público, não conseguiu equacionar o estrangulamento financeiro dos estados.

A despeito desta lição histórica, o PROPAG, apoiado pelo Governo Federal, forças de esquerda e setores neoliberais, replica padrão semelhante, induzindo novamente o processo de desestatização no âmbito dos estados.

Tal processo de desestatização terá desdobramentos negativos substanciais, em razão da importância econômica das empresas públicas estaduais. A análise desse impacto e do relevante papel desempenhado pelas estatais pode ter como referência as Leis Orçamentárias Anuais (LOA) de 2024 dos estados, que programam os investimentos a serem realizados por meio do orçamento fiscal e pelas empresas controladas não dependentes de aportes financeiros do Tesouro Estadual.

A Tabela 1 sistematiza informações de uma amostra de estados bastante representativa (22 Unidades Federativas), permitindo aquilatar a dimensão e a função estratégica desempenhada pelas empresas estaduais. Os dados disponíveis revelam que, neste ano, 117 estatais controladas pelos estados vão investir quase R$ 32 bilhões. Esse valor corresponde a 27% do investimento público estadual programado para 2024, que soma cerca de R$ 117 bilhões.

O peso das estatais no investimento público estadual é distinto em cada estado. No Acre, por exemplo, que conta com apenas uma sociedade de economia mista não dependente, o investimento público estadual é realizado praticamente apenas por meio do orçamento fiscal. Mas, no Piauí, ocorre o inverso: as duas estatais existentes respondem por 88% do investimento público estadual. Em média, as estatais estaduais respondem por cerca de 24% dos investimentos programados pelos estados para 2024.

Os dados sistematizados na Tabela 1 demonstram também que Minas Gerais será o ente federado mais afetado pelo processo de desestatização a ser deflagrado pelo PROPAG, em decorrência da relevância econômica e institucional que as estatais assumem na estrutura do governo estadual. Tal relevância se destaca entre os estados da federação, pois Minas Gerais controla o maior número de empresas públicas não dependentes (15 entidades) e tem programado o maior volume de investimentos, tanto em termos absolutos quanto em termos relativos: o orçamento das estatais mineiras é superior a R$ 8 bilhões, significando mais de um quarto do total das inversões consolidadas das estatais estaduais em 2024.

Esse desempenho confirma que as estatais são, na realidade, o motor do investimento público estadual em Minas Gerais. Basta verificar que, entre 2005 e 2024, as estatais estaduais investiram, conjuntamente, valor médio anual de R$ 10,4 bilhões (a preços de julho de 2024). Nesse período de dois decênios, as empresas públicas não dependentes foram responsáveis, em média, por 60% do investimento público estadual realizado anualmente na economia mineira.

Do total dos investimentos das estatais mineiras em 2024, que correspondem a 53% do investimento público estadual, 86% (quase R$ 7 bilhões) serão aportados pelo Grupo Cemig e a Copasa, juntamente com sua controlada, a Copanor. Já a Codemig, embora tenha investimentos relativamente baixos (R$ 12,6 milhões em 2024), proporciona fluxos de dividendos ao governo estadual bastante significativos, além de compartilhar o controle sobre a maior mina de nióbio do mundo, o que a transforma em uma empresa estratégica para Minas Gerais. Somente em 2023, a Codemig transferiu para o Governo Estadual (Tesouro e a controladora Codemge) R$1,43 bilhão a título de remuneração societária (dividendos e juros sobre capital próprio). Destacam-se aqui apenas essas três estatais, porque são elas que provavelmente devem ser federalizadas no bojo do refinanciamento da dívida estadual ao amparo do PROPAG.

Evidencia-se, portanto, que a federalização das estatais mineiras, com a finalidade de amortizar antecipadamente parcela da dívida detida junto à União, terá impacto econômico e institucional de grande extensão para Minas Gerais. Um desdobramento imediato consistirá na perda do poder decisório do governo estadual sobre o programa de investimentos das estatais. Ou seja, o Governo Estadual não poderá mais influenciar na determinação do montante dos investimentos a serem realizados pelas empresas, nem muito menos terá possibilidade de orientar a alocação setorial e regional desses aportes de recursos. Assim, do ponto de vista da administração estadual, a federalização terá efeito prático e imediato idêntico ao da privatização, implicando na fragilização da capacidade do estado de formular, financiar e implementar políticas públicas, o que afetará de forma sistêmica e estrutural as perspectivas de desenvolvimento socioeconômico de Minas Gerais no médio e no longo prazo.

Diante do contexto econômico e institucional claramente desfavorável para Minas Gerais que se abre a partir do processo de desestatização induzido pelo PROPAG, cabe indagar sobre as alternativas que poderiam ser adotadas com a finalidade de conciliar o refinanciamento da dívida e a manutenção e fortalecimento das capacidades estatais da administração pública estadual. Em razão do consenso estabelecido em torno do programa proposto pelo Senador Rodrigo Pacheco, tais alternativas devem ser buscadas obrigatoriamente no âmbito do próprio PROPAG, de modo a terem viabilidade política mínima de implementação.

Com base nesse critério, podem ser identificadas pelo menos duas alternativas, ambas envolvendo os instrumentos suscetíveis de serem usados pelos estados para amortizar antecipadamente parcela da dívida elegível pelo PROPAG. O substitutivo do projeto de lei (PLP 121/2024), aprovado no Senado e enviado à apreciação da Câmara dos Deputados, estabelece oito instrumentos (art. 3º):

  1. Moeda corrente;
  2. Participações societárias em estatais estaduais;
  3. Bens móveis e imóveis;
  4. Créditos detidos junto ao setor privado;
  5. Créditos detidos junto à União;
  6. Recebíveis originados da dívida ativa;
  7. Recebíveis originados das transferências do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR) a favor dos estados, e
  8. Outros ativos a serem definidos em regulamento posterior.

A primeira alternativa consistiria em promover, por meio de emenda aditiva ao texto do projeto de lei complementar que cria o PROPAG, a hierarquização sequencial dos oito instrumentos previstos para a amortização antecipada de parcela do estoque da dívida, colocando as participações societárias em estatais como último instrumento a ser utilizado na operação. Ou seja, as participações societárias em estatais seriam um instrumento de pagamento residual, usado somente na eventualidade de os demais mecanismos previstos não alcançarem valor suficiente para eliminar os juros incidentes sobre o saldo devedor a ser refinanciado.

No caso de Minas Gerais, cujo estoque da dívida elegível ao PROPAG corresponde a R$ 151,35 bilhões (saldo em junho/2024), é necessária uma amortização antecipada em torno de R$ 31 bilhões para eliminar integralmente os juros do refinanciamento. Para fazer face a esta obrigação, o Estado conta com créditos a receber de curto e longo prazo, incluindo a dívida ativa, que somaram R$ 19,07 bilhões, líquidos de ajustes para perdas, em 2023. O Estado possui, ainda, um conjunto de bens imóveis avaliados em R$ 20,38 bilhões, descontada a depreciação. Considerado conjuntamente, esse patrimônio financeiro e imobiliário estadual alcançaria valor de R$ 39,45 bilhões, superior à parcela da dívida a ser paga antecipadamente. Contudo, é improvável que esse estoque de ativos e imóveis públicos possam ser integralmente realizados na operação, o que nos leva à segunda alternativa, que envolve as receitas de transferências futuras do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional – FNDR.

Criado na recente reforma tributária, o FNDR está previsto no art. 159-A da Constituição Federal e no art. 13 da Emenda Constitucional nº 132/2023, estabelecendo um fluxo anual permanente de recursos aos estados, a serem aportados por meio do Orçamento Geral da União – OGU. As transferências começam a ser pagas em 2029 e serão crescentes, subindo gradualmente de R$ 8 bilhões a R$ 60 bilhões, estabilizando-se neste valor a partir de 2043. Os valores serão atualizados pela variação acumulada do IPCA, de 2023 até o ano anterior ao da transferência efetuada pela União.

A utilização desses recursos futuros na amortização antecipada de parcela da dívida foi proposta pelo Senador Astronauta Marcos Pontes – PL/SP. Mas, como a norma constitucional não permite o direcionamento das receitas do FNDR ao pagamento de dívidas, a proposição foi incorporada apenas parcialmente no projeto de lei que cria o PROPAG, prevendo a aplicação desses recursos somente para a realização de estudos, projetos e obras de infraestrutura.

A segunda alternativa para aprimorar o PROPAG, no sentido de evitar o danoso e desestruturante processo de desestatização no plano estadual, consistiria justamente em viabilizar o uso pleno dos recursos futuros do FNDR na amortização antecipada de parcela da dívida a ser refinanciada. Para isso, seriam necessárias duas mudanças normativas: uma emenda supressiva ao texto do projeto de lei do PROPAG, retirando o §7º do art. 3º, e uma emenda constitucional aditiva, acrescentando um inciso no art. 159-A da Constituição Federal que permita a utilização extraordinária de receitas do FNDR para amortização das dívidas elegidas pelo PROPAG por parte dos estados que aderirem ao programa.

A Tabela 2 apresenta estimativas das transferências a serem recebidas por Minas Gerais do FNDR entre 2029 e 2043, trazidas a valor presente, mediante a aplicação de diferentes taxas de desconto. Nestas estimativas, foram utilizados o coeficiente de participação de Minas Gerais no Fundo de Participação dos Estados – FPE, calculado pelo Tribunal de Contas da União – TCU para o exercício de 2025, e a proporção estadual na população brasileira, de acordo com a projeção mais recente do IBGE. Conforme determinação constitucional, esses dois parâmetros são ponderados pelos seguintes pesos: 70% e 30%, respectivamente. Por fim, foi estimada uma inflação decrescente, partindo do Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA de 4,62% em 2023, até estabilizar-se em 3% ao ano a partir de 2032.

As estimativas mostram que Minas Gerais poderá receber valores que variam de quase R$ 19 bilhões a mais de R$ 36 bilhões, a depender da taxa de desconto aplicada. Em um cenário intermediário, as transferências alcançam cerca de R$ 26 bilhões. O que as estimativas comprovam é que os recebíveis vinculados ao FNDR podem ser um instrumento-chave para reduzir o estoque da dívida a ser refinanciada pelo PROPAG, permitindo um abatimento antecipado do passivo suficiente para eliminar a incidência dos juros ou, no pior cenário, reduzindo sobremaneira o esforço financeiro dos estados, de modo a tornar desnecessária a federalização das estatais e, assim, evitando o processo de desestatização subjacente ao programa.

Vale notar que a magnitude dos recursos passíveis de serem apurados pelos estados por meio do FNDR dependerá da taxa de desconto a ser aplicada, como comentado anteriormente, mas também da trajetória futura de longo prazo da inflação e da taxa de juros, bem como do custo financeiro da operação da emissão dos recebíveis, a ser negociado com o Governo Federal. Mas um fator crucial será, com certeza, o período de utilização do FNDR para a emissão de recebíveis.

Nas nossas estimativas, consideramos apenas os 15 primeiros anos de vigência do novo fundo constitucional. Caso esse horizonte de tempo seja ampliado, por exemplo, de 2043 para 2050, levando em conta, portanto, um prazo de utilização do FNDR para a amortização de parte da dívida de 22 anos, os valores mudam substancialmente. Nesse novo prazo mais estendido, o montante de transferências a ser apurado por Minas Gerais variaria de R$ 25 bilhões a R$ 57 bilhões, sendo que no cenário intermediário esse valor ficaria acima de R$ 37 bilhões.

O aspecto mais importante dessas estimativas e que deve balizar as decisões dos atores envolvidos na elaboração do novo programa de refinanciamento é que a utilização dos recursos futuros do FNDR na amortização antecipada de parcela da dívida estadual é vantajosa tanto para os estados quanto para a União. Para os Estados, o uso dos recursos do FNDR fará com que o refinanciamento da dívida tenha impacto fiscal e patrimonial nulo, pois envolverá receitas futuras e ainda não incorporadas no orçamento e, além disso, vai tornar desnecessária a federalização de empresas, ativos financeiros e bens públicos de sua propriedade. Para a União, o uso dos recursos do FNDR reduzirá substancialmente os aportes de recursos que deverão ser feitos anualmente no fundo, contribuindo, portanto, para o equilíbrio das contas públicas federais e para a atenuação das restrições orçamentárias do governo central. Ademais, o uso dos recursos do FNDR reduzirá ou eliminará as incertezas e riscos do PROPAG para o Governo Federal, que não precisará absorver empresas estaduais, ativos financeiros e bens públicos cuja a higidez patrimonial e liquidez são, efetivamente, desconhecidas.

Conforme demonstrado nos parágrafos anteriores, o PROPAG induz um novo ciclo de desestatização bastante amplo no plano estadual, cujos efeitos tendem a ser desestruturantes, em razão, principalmente, do relevante papel exercido pelas estatais controladas pelos estados.

Ficou demonstrado também que há alternativas disponíveis que permitem conciliar o refinanciamento da dívida e a preservação e fortalecimento das capacidades governativas das administrações públicas estaduais. Tais alternativas não desfiguram o PROPAG, mas, ao contrário, aprimoram o programa, pois permitem refinanciar a dívida com impactos fiscais e patrimoniais nulos para os estados, ao mesmo tempo em que reduzem as incertezas e riscos incorridos pela União e contribuem com o equilíbrio orçamentário do Governo Central.

Sob tal perspectivas, torna-se tecnicamente injustificável manter inalterado o modelo de refinanciamento estabelecido pelo PROPAG, que condiciona apoio financeiro à desestatização da administração pública estadual. A insistência na implementação desse modelo de refinanciamento de natureza privatista, que já se comprovou historicamente inadequado e inconsistente, somente pode ser justificado politicamente, vinculando-se, portanto, a interesses e projetos estratégicos que permanecem não devidamente explicitados.