Digressões sobre a Participação em Governos Populares

O tema da participação sempre ocupou espaço especial na retórica das campanhas municipais, para os candidatos do campo popular. Falar em participação hoje não tem o mesmo significado do que foi falar em participação no período de redemocratização do país. O significado de ‘participação’ se define como jogo-de-linguagem. Os sentidos possíveis de ‘participação’ dependem da situação histórica em que os interlocutores estão construindo as pretensões de validade que darão significado ao termo. Nesta perspectiva, “promover a participação”, “mais participação”, “ampliar a participação”, bordões típicos do discurso político durante eleições municipais, não carregam o significado daquilo que impulsionou os governos populares no início da Nova República.

A problemática da participação se estabeleceu para as forças políticas do campo popular no Brasil, a partir do período da Redemocratização, com as primeiras eleições diretas para prefeito em 1985 e 1988. A proposta de uma democracia participativa representava uma alternativa à cultura autoritária dos governos civis durante a Ditadura Militar brasileira. Ela foi alimentada pela ideologia das organizações de esquerda e, principalmente, pelas práticas das Comunidades Eclesiais de Base – CEB orientadas pela Teologia da Libertação e pela realidade das associações de bairro, que atuaram silenciosamente durante a Ditadura. Tudo isso foi fundamental para impulsionar o sentido da ação política redemocratizadora, mas se dissolveu na trajetória política que se seguiu, diante da transformação por que passou a esfera pública brasileira nas décadas que se sucederam. Hoje, a participação se reveste outros significados para governos populares.

No início da Nova República, o país dava os primeiros passos para superar o autoritarismo dos governos municipais durante a Ditadura Militar e a inércia política gerada pelo longo período de eleições indiretas para prefeitos. O país iniciava também a trajetória de pluripartidarismo e da luta para superação das práticas clientelistas e do populistas. Os partidos começavam a apresentar seu projeto de democracia. Chegou-se a falar em ‘conselhos populares’ como modo de governar inspirados na tradição bolchevique, como na campanha do PT em Belo Horizonte de Virgílio Guimarães, e em Fortaleza, que elegeu Maria Luiza Fontenele em 1985.

Entretanto, foi a iniciativa de se promover processos populares para discussão e definição de ações no orçamento municipal que se tornou a alternativa principal de participação nas 36 prefeituras que o Partido dos Trabalhadores -PT conquistou em 1988, incluindo 3 (três) capitais (Porto Alegre, São Paulo e Vitória), com destaque em Minas Gerais para as administrações petistas de Ipatinga, Timóteo e João Monlevade. A iniciativa do Orçamento Participativo foi revolucionária. Constituiu uma vigorosa e consistente iniciativa de promoção da participação direta dos segmentos sociais excluídos até então. Pôs em xeque a tradicional dinâmica da relação entre os Poderes Executivo e Legislativo e o perfil autoritário de se fazer política. Deu materialidade à democracia participativa para além dos devaneios ideológicos, trazendo para a vida pública o tema da natureza ‘consultiva’ ou ‘deliberativa’ dos processos de participação popular em governos.

O conceito de Orçamento Participativo ganharia corações e mentes, mas não se consolidaria enquanto um modo de governar sistêmico do PT, embora tenha se mantido como referência programática. Várias questões objetivas ajudam a entender a mudança da importância política das iniciativas de OP. A partir da Constituição de 88, houve a implementação dos conselhos setoriais (saúde, criança e adolescente, assistência social, dentre outros), que criaram uma dinâmica própria de participação na formulação de políticas públicas. Houve também a consolidação da política parlamentar como espaço negocial relevante para interlocução com movimentos sociais e organizações não-governamentais. Do mesmo modo, ao longo dos anos que se sucederam, aconteceu a implantação de uma infraestrutura social e urbana consistente, ainda que não universal, que redefiniu o foco das lutas sociais. Nesta perspectiva, não só houve mudanças de processos, mas fundamentalmente a retórica da busca por uma democracia participativa se dissolveu nesse período.

Hoje, mais de três décadas após a redemocratização, o significado da participação para governos municipais não se alinha linearmente com o enfrentamento do autoritarismo. O significado da participação para governos populares na atualidade ganhou outros sentidos tais como construir e viabilizar uma agenda social, urbana e econômica envolvendo os diversos grupos de interesses nas cidades, atuar no contexto institucional consolidado do Estado Democrático Brasileiro e ocupar produtivamente a esfera pública digital proporcionada pelas redes sociais.

Mudou profundamente a realidade das cidades, mudaram as características da esfera pública brasileira. Muitas conquistas de inclusão social aconteceram, muitos mecanismos de controle social foram instituídos, ainda que seja inquestionável que muitos segmentos sociais continuam excluídos das políticas públicas básicas e que muitos problemas gerais e locais das cidades permanecem pendentes de solução. Igualmente, o acesso a informações sobre o orçamento municipal e sobre a implementação das políticas públicas tornou-se princípio estruturante da vida pública no país, com suporte na Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei nº 12.527/2011) e na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Além disso, as redes sociais conferiram outra dinâmica à formação da opinião pública. Potencializaram a circulação de notícias falsas (fake news), deteriorando o debate e da convivência política, expondo 24 horas por dia, 7 vezes por semana, a atuação dos agentes públicos com julgamentos instantâneos e sumários. Apesar disso, não resta dúvida que a Era da Informação produziu novos canais de comunicação e novas perspectivas participativas. Reduziu o espaço a zero, permitindo consultas instantâneas e amplas com soluções digitais, consultas sistemáticas à sociedade sobre todo tipo de tema, e circulação de informações e interlocução imediata e dinâmica entre os indivíduos, além de oportunizar iniciativas de formação à distância. Não se constitui em um problema como a crítica a seus desgovernos acaba por induzir à conclusão, mas uma grande revolução no processo de interação na esfera pública.

Desde a Constituição de 88, a democracia representativa nos municípios patina para produzir soluções objetivas e cumulativas nas cidades. Certamente, o parlamento municipal carece de maior empoderamento, no arcabouço constitucional-federativo. Ainda assim, os vereadores desfrutam da importante competência de apreciarem as propostas orçamentárias do Executivo. Contudo, o exercido dessa prerrogativa, via-de-regra, demonstra viés visivelmente paroquial, baixa resolutividade na aprovação de orçamentos direcionados efetivamente para o enfrentamento dos problemas da cidade, considerando a atribuições definir prioridades da Lei de Diretrizes Orçamentárias-LDO (art. 165, § 2º), aprovada anualmente, o papel.

Ademais, o Executivo vem conferindo tratamento marcadamente burocrático aos Planos Plurianuais -PPA. Eles poderiam se constituir em planos estratégicos de desenvolvimento econômico e social das cidades com a definição de ações e previsão de recursos a médio prazo, mas permanecem como cartas de intenção gerais. Já as audiências públicas quadrimestrais, instituídas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 9º LC nº 101/2000), onde Legislativo, Executivo e sociedade têm a obrigação de se encontrar periodicamente para avaliar nas Câmaras Municipais a execução do orçamento e o cumprimento de prioridades, são, igualmente, acontecimentos marcados pelo burocratismo da representação. Elas são um importante momento da vida pública nas cidades e, geralmente, se perdem em relatos contábeis formais, quando não em enfrentamentos rasos entre as representações políticas.

Vale lembrar que o Legislativo Municipal passou também a se beneficiar do chamado de ‘orçamento impositivo’, desde 2022. Com a garantia da execução de suas emendas, os vereadores elevaram sua atuação à de administradores regionais. Tal competência de poder criar despesas flexibilizando a competência privativa de vinculação administrativo-constitucional do Poder Executivo de propor orçamento anual criou nova dinâmica na esfera pública (Constituição Federal, art. 22).

Diante dessa realidade, a democracia participativa em governos municipais demanda colocar em evidência novos significados. Não é suficiente direcionar o foco no enfrentamento do autoritarismo, porque a esfera pública incorporou novas funcionalidades, novo dinamismo. A institucionalidade se ressignificou.

É preciso buscar sentidos para uma participação que proporcione pactuações estruturadas e perenes para o desenvolvimento urbano, social e econômico de nossas cidades. É preciso que ela contribua para aproximar os seus moradores da gestão dos problemas da cidade. É preciso que ela seja capaz de dar voz, dar vida, ativar os enclaves locais culturais, esportivos, sociais e econômicos, que sobrevivem, disputam protagonismo nas esquinas, nos viadutos, nos bairros, nas praças, no comércio, nas comunidades das cidades, enquanto são pactuados os empreendimentos estratégicos e enfrentada a melhoria dos serviços municipais.