Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil

O debate macroeconômico sobre retomada do crescimento tem sido dominado no Brasil pela visão de economistas e jornalistas. Neste documento, o leitor encontrará uma crítica e propostas oriundas da experiência de um engenheiro. Derivada do latim ingenium “talento, qualidade nata”, de in-, “em”, mais gen-, da raiz de gignere, “produzir, gerar”, a engenharia confere a quem a ela se dedica a capacidade de usar a precisão das ciências exatas para engendrar utilidades através do ajuste e aproximação.

O Centro de Altos Estudos da Fundação Perseu Abramo publicou, em setembro de 2020, o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil – Outro Mundo é Preciso, Outro Brasil é Necessário, documento de 215 páginas que analisou as contingências em que se encontra o Brasil após o impeachment de 2016 e sugeriu ações emergenciais e de longo prazo para recuperar a economia, os instrumentos de inclusão social e retomar a soberania nacional. A despeito do mérito dos seus idealizadores em recapitular os avanços obtidos nos governos do PT no período 2003-2016, o documento parece ter como alvo o próprio partido ao procurar reacender a chama de uma militância que levou Lula ao poder em 2003, mas se mostrou inoperante diante dos estratagemas político-judiciários que levaram à destituição de Dilma. Em síntese, a mensagem dos autores poderia ser resumida da seguinte maneira: “Fomos injustiçados pelos acertos e não pelos erros do nosso governo. Já provamos que sabemos governar. Vamos mostrar que podemos fazer melhor”.

Por mais que a reativação da sua militância seja indispensável para recolocar o PT como alternativa real de poder em 2022, não é com ela que o partido precisa se comunicar para ganhar as eleições. Nesse sentido, é necessário retrabalhar o documento, preservando a direção política nele contida, mas sendo específico sobre os objetivos que se espera alcançar e os meios que se intenciona utilizar.

Num ambiente político polarizado e contaminado pela balburdia ensurdecedora da mídia, a mensagem do PT só será ouvida se ele falar para o conjunto da sociedade brasileira usando um instrumento revestido da mesma simplicidade, clareza e objetividade que constituiu o Plano de Metas de JK na campanha de 1955.

Se a construção de Brasília foi a síntese do Plano de Metas, é a retomada do crescimento o núcleo a partir do qual se viabilizam as propostas econômicas e sociais do documento elaborado pela Fundação Perseu Abramo. E se o investimento público é apontado como indispensável para a retomada do crescimento, cabe ao PT indicar os seus eixos básicos e como pretende superar as barreiras políticas e institucionais que o inibem.

Moderna Teoria Monetária: o Fundamento Teórico Revelado pela Evidência Empírica

As discussões em torno da Moderna Teoria Monetária – MTM que antecederam a eleição de J. Biden nos Estados Unidos e encontraram reverberação local nos artigos publicados por André Lara Rezende deixaram evidentes que os limites impostos ao endividamento público de um país emissor de moeda fiduciária soberana são de natureza meramente político- ideológica. Como só o Estado tem a prerrogativa de emitir a moeda com a qual exige que sejam pagos os impostos que cobra de seus cidadãos, não existe razão técnica para que ele entre em default e não pague seus credores. O calote, se existir, é fruto de uma decisão política e não de falta de dinheiro. Moeda fiduciária emitida pelo Estado e título da sua dívida são exatamente idênticos: representam um passivo do Estado perante a sociedade e possuem a mesma liquidez. A única diferença é que o Estado oferece ao detentor da dívida pública uma remuneração na forma de juros, ao passo que quando emite moeda ele está isento desse custo. Explicar a razão do governo emitir dívida e pagar juros ao invés de imprimir moeda ultrapassa os objetivos desse texto. Restrições ideológicas ao aumento da dívida pública são limitações autoimpostas, justificadas com base numa relação de causa e efeito entre quantidade de moeda e inflação de preços que foi empiricamente desmascarada pelos trilionários estímulos fiscais norte americanos e europeus, apelidados de Quantitative Easing, criados para combater os efeitos da crise financeira de 2008.

A Moderna Teoria Monetária explica que a natureza fiduciária da moeda brasileira permite que o endividamento público deixe de ser inflacionário quando i) o dinheiro é aplicado em setores onde existe capacidade ociosa da indústria e mão-de-obra excedente, ii) quando o gasto público contribui para aumentar a produtividade da economia em setores independentes de importações ou que demandam pouco fornecimento externo (evitando pressão sobre o câmbio) e iii) quando o custo da dívida pública é menor que a taxa de crescimento do PIB, ambos em termos reais. A justificativa da afirmação é matemática, uma vez que o investimento adequado gera crescimento da atividade econômica que cria receitas fiscais suficientes para pagar os juros da dívida e reduzir a relação dívida/PIB.

A realidade da pandemia do Coronavirus levou os governos no mundo todo, inclusive no Brasil, a aumentar o gasto público através de endividamento para viabilizar o socorro às populações e setores econômicos mais fragilizados. Devemos ainda recordar que em 2008 a dívida pública foi usada para resgatar o sistema financeiro.

Da mesma forma que o endividamento se justificou para evitar a falência dos bancos na Crise do Subprime e o colapso da estrutura social e econômica imposto pelo combate a pandemia, não existe razão técnica para ele não ser usado para recuperar estradas, construir fábricas e expandir a autonomia tecnológica de um país.

A questão que se coloca para a campanha eleitoral em 2022 é, portanto, em primeiro plano um problema de comunicação. O PT precisa ser capaz de criar espaço nas mídias para combater a pregação neoliberal de que apenas o equilíbrio orçamentário gera crescimento, porque cria expectativas favoráveis que fortalecem a confiança do setor privado e o faz investir. A história está repleta de evidências de que expectativas favoráveis e confiança no governo são condições necessárias, mas absolutamente insuficientes para levar o setor privado a investir, principalmente na infraestrutura e em setores estratégicos onde o prazo de retorno é longo e o risco de mercado elevado.

Reconquistada a legitimidade do argumento de que o Estado pode aumentar a dívida pública para ser capaz de investir (e não apenas de pagar juros e evitar caos social), a proposta do PT em 2022 deve abordar a questão da governança institucional necessária para assegurar previsibilidade e continuidade do investimento público, bem como os eixos estratégicos prioritários para a ação estatal.

Déficit Orçamentário e Expansão do Investimento Público: um Problema de Comunicação

Talvez seja a comunicação com os eleitores e formadores da opinião da grande mídia o desafio mais sério e importante que se coloca para o PT, pois do seu sucesso dependerá a capacidade dele atrair aliados políticos para viabilizar uma futura aliança parlamentar estável. E não será fácil desqualificar o discurso equivocado, mas simples de entender, de que o governo precisa ser gerido tal como uma empresa, só podendo gastar aquilo que fatura. Vai ser preciso colocar na cabeça do eleitor que o Estado não é igual a uma empresa, que ele cria dinheiro e precisa gastar esse dinheiro pagando despesas e fazendo investimentos antes de ser capaz de cobrar impostos ou de vender títulos da dívida.

Imaginar que a arrecadação de impostos e a emissão da dívida pública não tem a função de financiar os gastos do governo é o ponto de partida mais difícil de ser aceito. A sociedade precisa entender que eles são instrumentos que geram liquidez ao passivo do Estado, que previnem o surgimento da inflação na medida em que diminuem o consumo em situações de gargalos na oferta, podendo ainda ser empregados para reduzir a desigualdade social tributando e cobrando juros de ricos e pobres de maneira diferente ou também para induzir uma conduta social sadia através da tributação do consumo por exemplo de cigarro. Essa abordagem está tão distante do senso comum como esteve a descoberta de que o Sol não gira em torno da Terra. Mas como o povo conseguiu perder o medo de ser mandado para o inferno ao aceitar as evidências da teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, pode ser que ele também supere o temor do déficit público e passe a refutar a crença de que a dívida pública do Brasil é alta demais e, portanto, a causa de um sofrimento inevitável do qual não poderá escapar.

A tarefa não é simples, pois a incapacidade ou desinteresse dos círculos acadêmicos em levar ao grande público as alternativas apresentadas pela Moderna Teoria Monetária ficaram evidentes, quando o Instituto de Economia da Unicamp sediou no segundo semestre de 2019 um extenso curso ministrado por L. Randall Wray, economista responsável pelo termo MTM. A repercussão na mídia foi mínima. De maneira surpreendente quem trouxe o tema para o contraditório público na imprensa e em seminários se oferecendo ao enfretamento com defensores da ortodoxia rentista não foi um representante do PT nem da esquerda, mas André Lara Resende, um liberal acima de qualquer suspeita. É ele quem tem destrinchado com simplicidade e didática as características da moeda fiduciária e da macroeconomia a partir da perspectiva do governo central, revelando o espaço para retomada do investimento público mesmo numa conjuntura marcada pelo déficit orçamentário.

Aderir aos ensinamentos da MTM e ao discurso de André Lara Resende demandará do PT não apenas aceitar uma alternativa teórica desprezada pelos economistas do mainstream – inclusive do próprio partido -, mas principalmente admitir um confronto com o passado do Governo Lula. Isso porque Marcos Lisboa, ex-secretário de política econômica no período 2003-2005 e o INSPER, entidade que dirige e na qual leciona, são exemplos da corrente reacionária conservadora que recusa qualquer evidência da desconexão entre dívida pública e inflação com o argumento medíocre de que no Brasil as coisas são diferentes, pois seu passado inflacionário interdita qualquer outra opção para a gestão macroeconômica além do receituário ortodoxo neoliberal.

Defender na campanha eleitoral de 2022 a retomada do crescimento econômico com investimento público implica defender o aumento conjuntural do déficit primário como ferramenta para que o país possa reduzi-lo em seguida, sem desorganizar a prestação dos serviços públicos essenciais e sem condenar o país ao sucateamento irreversível do que lhe restou de infraestrutura industrial e de aparato educacional científico e tecnológico.

Durante a campanha eleitoral a sociedade precisa conhecer, entender e aceitar uma alternativa ao discurso fatalista do equilíbrio orçamentário a qualquer custo. O povo brasileiro não merece reviver os cavalos de pau de 2003 e 2015, quando o PT ganhou a eleição com uma promessa progressista, para aplicar por escolha ou falta de opção, já no primeiro ano de governo, exatamente o receituário macroeconômico ultraconservador.

Do ponto de vista institucional, a retomada do crescimento com aumento do investimento estatal requer a extinção ou aperfeiçoamento da emenda constitucional do teto de gastos. Dificilmente o PT encontrará aliados para extingui-la por completo e deverá priorizar a retirada do gasto com investimento do teto se servindo do que nele for mantido para disciplinar estruturas da burocracia estatal.

Uma Governança Consistente para o Investimento Estatal

Os programas de investimento público são muito importantes para a formação das expectativas de todos os setores produtivos do país, permitindo que eles se antecipem e se preparem para o atendimento da demanda por infraestrutura, máquinas e tecnologia. Do ponto de vista da realização, é da natureza de qualquer investimento o gasto de tempo nas fases de projeto, licenciamento ambiental, contratação e execução. Por isso, a maioria dos investimentos estatais supera o prazo do governo que os origina sendo indispensável que estejam submetidos a uma governança capaz de assegurar previsibilidade e continuidade. Essa governança requer uma estrutura institucional forte e permanente.

Nesse aspecto, serve de inspiração para a governança do investimento estatal um arranjo nos moldes daquele responsável pela governança do Sistema Financeiro Nacional: Conselho Monetário Nacional – CMN, Comissão Técnica da Moeda e Crédito – COMOC e Banco Central do Brasil – BACEN.

Propõe-se, deste modo, conceituar o Sistema Produtivo Nacional tendo como órgão superior no Governo Federal o Conselho Nacional para o Investimento Público – CONIP instituição permanente assessorada pela Comissão Técnica de Infraestrutura, Indústria e Tecnologia – CTIIT e tendo, como órgão executor, a Agência Nacional de Investimento – ANI, esta última a ser extraída de dentro do BNDES.

A missão institucional do CONIP é assegurar o crescimento moderno e diversificado do parque produtivo do país. Ao CONIP seria delegada a definição das metas de oferta de infraestrutura física e tecnológica estratégica, e o gerenciamento de uma verba orçamentária plurianual, fixa como percentual do PIB, definida e aprovada pelo Congresso para períodos de no mínimo 3 anos. A cada ano fiscal A, seria votada a verba do ano A+2, respeitando os limites mínimos e máximos – por exemplo, mínimo 3% e máximo 5% do PIB – e o valor já efetivamente comprometido no ano corrente e o ano seguinte. À Comissão Técnica de Infraestrutura, Indústria e Tecnologia caberia a realização de estudos prospectivos orientadores do esforço de investimento nos eixos estratégicos de desenvolvimento, cabendo à Agência Nacional de Investimento a alocação dos recursos, bem como a supervisão e monitoramento dos órgãos executores, podendo estes estarem vinculados à União, Estados e Municípios ou serem contratados diretamente pela ANI junto a entidades privadas controladas por capital nacional.

Uma estrutura institucional do tipo da que está sendo proposta para a gestão do investimento público não é nenhuma novidade no Brasil. Basta ter em consideração a experiência de sucesso implantada no setor elétrico a partir de 2004. Apesar de todas as críticas relacionadas ao preço da energia cobrada dos consumidores e de alguns problemas pontuais de execução, é um fato inquestionável que a governança do setor elétrico criada pelo primeiro governo do PT assegurou de maneira ininterrupta ao longo dos últimos 15 anos o aumento contínuo da capacidade instalada de geração e transmissão de eletricidade, a diversificação da matriz energética e a garantia do suprimento, mesmo em cenários conjunturais de stress hídrico severo. Podem ser extraídos dessa experiência exemplos a serem adaptados à ação do CONIP, como o planejamento de médio e longo prazo realizado pela Empresa de Pesquisa Energética, os leilões competitivos com grande participação de agentes privados promovidos pela Agência Reguladora – ANEEL, a gestão dos contratos de fornecimento realizada pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE e a operação da oferta de energia executada pelo Operador Nacional do Sistema – ONS. As críticas ao custo da eletricidade nada tem a haver com os investimentos realizados, e residem no oportunismo da burocracia estatal que há décadas conseguiu se apropriar de um insumo vital para a atividade produtiva do país e transformá-lo numa ferramenta altamente eficaz de arrecadação de impostos.

Considerando que é essencial a compatibilidade da política fiscal – os gastos com investimento público com a política monetária – oferta de crédito e taxas de juros, CONIP e CMN precisam atuar de forma harmônica e contracíclica submetendo o cumprimento de suas metas a uma avaliação conjunta. Contrariando a ortodoxia neoliberal, o desenvolvimento do Brasil passaria a contar com um arranjo institucional híbrido, movido por dois “motores” bem estruturados – um fiscal e outro monetário – operando de maneira conjunta e complementar. A imagem que se encaixa nessa proposta é a configuração de veículos elétricos híbridos, nos quais a potência global é obtida com um motor a combustão, que aciona a transmissão ao mesmo tempo em que recarrega uma bateria que alimenta um motor elétrico, este também ligado ao eixo que traciona as rodas do veículo. Graças à configuração híbrida obtém-se uma autonomia e performance flexíveis com baixo consumo de gasolina ou etanol utilizando-se baterias elétricas leves e compactas. Todo o segredo do veículo elétrico híbrido reside no sistema eletrônico que comuta os acionamentos elétrico e à combustão de acordo com as condições do terreno e de tráfego. Ao CONIP e CMN será cobrada essa capacidade de comutação instantânea e eficaz entre tração fiscal e monetária.

Assim em situações de conjuntura desfavorável, necessitada de maior estímulo estatal (estrada de terra e subida de serra), o CONIP trabalharia no limite superior da meta do gasto com investimento público. O CMN reduziria as taxas de juros e aumentaria a oferta de crédito (o motor elétrico atua junto com o motor a combustão). Em anos com bom desempenho do crescimento do PIB (descida da serra numa rodovia asfaltada) o CONIP reduz o investimento público para o limite mínimo (motor combustão apenas ligado), o governo aumenta os impostos (os freios que geram energia para carregar a bateria) e o CMN limita a oferta de crédito (motor elétrico opera no mínimo).

Os Eixos Estratégicos e os  Instrumentos Eficazes para o Investimento

São cinco os eixos estratégicos que merecem participação do investimento público: Saúde, Energia, Logística, Digitalização e Defesa. Os critérios para elencar esses setores se baseiam na elevada dependência da compra estatal, no enorme potencial de produção de tecnologias que transbordam para outros setores da economia, na complexidade de implantação e no imperativo da soberania nacional.

Obviamente, o agronegócio e a mineração são também setores altamente estratégicos nos quais o país dispõe de competitividade intrínseca, protagonismo mundial e grande potencial de crescimento. Ambos exigem indução estatal efetiva para deixarem a prática exportadora concentrada em commodities básicas. Entretanto, essa indução pode ser alcançada de maneira efetiva com instrumentos regulatórios e fiscais dispensando o investimento público.

Saúde, Digitalização e Defesa são setores no Brasil ainda altamente dependentes de matérias-primas, componentes e sistemas importados. A aceleração do investimento público nessas áreas num curto espaço de tempo implica em pressão considerável sobre o câmbio com aumento do risco inflacionário.

O foco inicial nesses eixos estratégicos precisa estar voltado para o ganho de autonomia em tecnologias e processos, na formação de mão- de-obra e no desenvolvimento de fornecedores locais de materiais, componentes e sistemas. Essa estratégia é indispensável para reduzir o risco industrial quando a capacidade de oferta precisar ser ampliada atraindo o investimento privado. O investimento público nos complexos da saúde, digitalização e defesa estará voltado principalmente para a capacitação do ecossistema científico-tecnológico-industrial brasileiro, pois é a capacidade de combinar competências o que garante soberania e perenidade ao desenvolvimento.

A arrancada do investimento público no curto prazo deverá ser feita concentrando-se a ação do CONIP em logística e energia, tal como ocorreu com binômio energia e transporte nos anos 1950. Ao contrário do que existia no tempo de JK, hoje esses setores dependem pouco de importações de insumos e são capazes de absorver rapidamente a capacidade ociosa da engenharia nacional. O impacto positivo na produtividade de toda a economia é imediato além da melhoria na qualidade de vida das pessoas e do meio ambiente.

A prioridade no setor de logística é retomar obras paradas na malha de transporte do Brasil. Segundo relatório de auditoria do CGU de 18/11/2020, o valor total das obras paralisadas em contratos de mobilidade, rodovias, e pavimentação somavam em 31/12/2019 cerca de R$ 69 bilhões, dos quais 39% ou R$ 27 bilhões são oriundos do Orçamento Geral da União. Considerando-se que o Brasil encerrou 2020 com um Produto Interno Bruto corrente estimado em R$ 7.400 bilhões, a retomada das obras paralisadas no setor de transporte implicaria no comprometimento de 0,93% do PIB, admitindo-se que os 29% já gastos teriam sido perdidos e necessitariam ser repostos.

Estudos recentes2 demonstraram que apenas a melhoria do estado de conservação da infraestrutura de transporte é capaz de reduzir em 7,8% o consumo de combustível, 18,7% o gasto com manutenção dos veículos e 7% nas externalidades negativas relacionadas às emissões de CO2. Tudo isso significa aumento da competitividade do país. A produtividade do agronegócio seria uma das que mais cresceria com a melhoria da infraestrutura logística do país. Estudos realizados mostram que apenas na sojicultura a melhoria da logística aumenta a produtividade em 20% (Carlos Rossetto e Rosano-Peña, 2018).

O Brasil possui também um número considerável de obras paralisadas no setor de energia. Segundo a CGU, o valor dessas obras equivalia em fins de 2019 a R$ 53 bilhões e se relacionavam todas ao setor de petróleo e gás natural. Além da retomada de projetos interrompidos como o COMPERJ e as unidades de fertilizantes nitrogenados da Petrobras, o investimento público no setor de energia teria a missão de aproveitar o momento de transição tecnológica em que o mundo se encontra, para se inserir o Brasil no mercado emergente da mobilidade elétrica. Para isso o país precisa expandir sua capacidade de produção de materiais e tecnologias para baterias e motores elétricos. O impulso ao emprego da mobilidade elétrica é especialmente efetivo nas esferas onde o Estado é o regulador e o responsável pela oferta da prestação de serviços, como no transporte urbano de massa.

A retomada do investimento público necessita não apenas de uma governança institucional permanente como aqui se propõe, mas sobretudo da revisão do ordenamento regulatório e de controle externo. Analisando todas as obras paralisadas a CGU constatou que as questões orçamentárias e financeiras, erros de projetos, licenciamento ambiental e problemas relacionados a atuação de órgãos de controle e do judiciário são mais frequentes em obras de maior porte. Enquanto problemas relacionados a baixa capacidade dos técnica dos proponentes, administrativos e com empresas contratadas são mais comuns nas pequenas obras.

Investimento Público: Financiamento, Construção e Operação

Faz parte da pregação neoliberal desqualificar a capacidade do Estado investir, como se inexistisse no Brasil o fato histórico do governo federal ter sido capaz de construir uma cidade para ser capital do país num espaço de 3 anos e 10 meses, no meio do nada, e numa época em que engenharia brasileira ainda estava iniciando sua fase de consolidação e crescimento. O discurso padrão é que o investimento deve ser transferido para o setor privado nos modelos de concessões ou parceiras público privada porque o Estado está quebrado e não tem como arcar com o financiamento. Isso é um equívoco.

O Estado já é hoje quem, em última instância, sempre arca com o funding ou com o custo financeiro dos investimentos públicos, mesmo quando concebidos e executados pelo setor privado em PPP’s ou concessões. Num primeiro momento, o Governo precisa emitir títulos da dívida para capitalizar o BNDES com quem o empreendedor contrata o financiamento. A participação do capital próprio do empreendedor é sempre muito pequena, inferior a 25-30% da necessidade total de recursos. Quando o BNDES é substituído pela captação no mercado através da emissão de debentures incentivadas, o custo financeiro, apropriado por bancos estruturadores e debenturistas, é também do Estado, pois ele deixa de receber impostos sobre os rendimentos, dos quais as debentures de infraestrutura são isentas.

É evidente que o investimento público terá sempre o menor custo financeiro, quando for financiado diretamente pelo Estado, através da emissão de moeda, um passivo sem custo para o governo, ou da emissão de dívida pública, cujo risco soberano expresso na taxa de juros é sempre inferior ao risco privado.

Em relação ao custo de operação do ativo investido, o raciocínio é inverso. Ele é menor, quando está a cargo do setor privado, porque, no ordenamento legal vigente, o empresário privado dispõe de melhores instrumentos que o gestor público para arbitrar quantidades e preços formadores do custo de operação.

Assim, o melhor desenho para a retomada do crescimento do país é aquele no qual o Estado compra e paga pelo ativo de interesse público para, em seguida, repassá-lo para ser operado pelo setor privado. O ônus que o Estado decidir cobrar do operador privado na forma de outorga de concessão, participação na receita de exploração ou tributos sobre o lucro é matéria de decisão política, pois esse ônus será sempre pago pela população na forma de tarifa de uso.

Nos setores de saúde, digitalização e defesa, o setor privado recusa-se a fazer investimentos sempre que o risco de mercado e de performance do ativo são elevados. Mas a presença do empresário privado é indispensável pois, como já foi dito, ele atinge maior eficácia na arbitragem de quantidades e preços dos recursos necessários à realização do investimento. Nesses segmentos o melhor desenho para a participação do Estado é na tomada dos riscos financeiros através da compra do desenvolvimento ou da própria solução (material, componente, sistemas) em troca de participação nas receitas ou nos lucros que o empresário privado vier a obter na exploração comercial do ativo investido.

O KC 390, avião de transporte militar desenvolvido pela EMBRAER ainda sob controle privado nacional para substituir a frota de Hercules C-130 da Força Aérea Brasileira, é apenas um exemplo atual de que o Basil já é capaz de praticar o que aqui se propõe. Infelizmente, ainda pratica pouco, mas, se vier a fazê-lo de maneira contínua e coordenada, evitará perder para o capital estrangeiro a competência que construiu ao longo de muitos anos.

Entidades e Instrumentos de Cooperação Público Privado

A não ser o arranjo institucional aqui proposto para a governança do investimento público, o Brasil não precisa inventar nada de novo para retomar o investimento público de maneira efetiva e eficaz. Necessário e imprescindível será organizar e racionalizar a multitude de instituições e instrumentos que já existem.

Instituições públicas de inovação, ciência e tecnologia a exemplo da FIOCRUZ, EMBRAPII, EMBRAPA, IME, ITA, CDTN, IPEN, FINEP, universidades e empresas públicas e privadas estão disponíveis e estruturadas. Metaforicamente, elas atuam hoje, infelizmente, na maioria dos casos, como neurônios isolados na estrutura cerebral do desenvolvimento do país.

O que falta é criar muitas sinapses entre elas, para que os impulsos fluam de uma instituição para outra permitindo que desenvolvimento do Brasil adquira as capacidades lógicas e imaginativas do cérebro humano.

Na tarefa de organizar o que existe deve-se reproduzir o que já deu certo. No governo do PT, o Brasil conseguiu retirar o tema da defesa nacional da esfera exclusiva dos militares e torná-la um objeto de interesse de toda a sociedade e de atuação de suas representações organizadas. Foi criado, em 2008, um arcabouço institucional composto pela Estratégia Nacional de Defesa, pela Base Industrial da Defesa e pelas Empresas Estratégicas de Defesa. Foi a partir dessa estruturação que foram criados os programas prioritários do Exército, Marinha e Aeronáutica ainda hoje existentes direcionando os respectivos investimentos de modernização. O mesmo pode ser feito e adaptado para os setores da Saúde, Digitalização, Energia e Logística.

Espelhando-se no Sistema Financeiro Nacional que opera através de bancos, financeiras, corretoras, bolsa de valores, seguradoras etc, o Sistema Produtivo Nacional deve ser institucionalmente compreendido e operado a partir das cinco Bases Industriais e respectivas Empresas Estratégicas.

No nível dos instrumentos e incentivos, a imagem de neurônios isolados também se repete. No complexo da Saúde encontramos, por exemplo, as PDP’s- Parcerias de Desenvolvimento Produtivo criadas para ampliar o acesso a medicamentos e produtos de saúde considerados estratégicos pelo Sistema Único de Saúde – SUS por meio do fortalecimento do complexo industrial do Brasil. No setor da Digitalização, existe o PADIS:

  • Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores, na Logística; o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura – REID na Energia; o Repetro regime aduaneiro especial de exportação e de importação de bens que se destina às atividades de pesquisa e de lavra das jazidas de petróleo e gás natural; na Defesa, o Retid – Regime Especial Tributário para a Indústria de Defesa e muitos outros. Todos esses instrumentos podem e devem ser unificados e sistematizados para se tornarem ferramentas de promoção do investimento estatal em todos os seus cinco eixos estratégicos.

Por exemplo, enquanto o PDP atual está baseado na compra pelo SUS de determinado produto de um fornecedor estrangeiro em quantidades e preços previamente negociados, oferecendo a isenção imposto de importação, mas exigindo a transferência da tecnologia para uma instituição pública, e a internalização da manufatura num prazo determinado a partir do qual o imposto de importação será aplicado, um novo PDP 2.0 poderia ser aperfeiçoado. Por exemplo, a obrigação de transferência de tecnologia poderia ser feita para uma empresa qualificada como Empresa Estratégica de Saúde ao invés de obrigatoriamente para uma instituição pública, tal como ocorre nos programas de offset nas compras das Forças Armadas. Por outro lado, o Ministério da Defesa poderia usar o mecanismo de PDP 2.0 exigindo a transferência da produção para Brasil para acelerar o acesso, por exemplo, a modernos sistemas de monitoramento das fronteiras e de defesa cibernética.

O Brasil só vai conseguir recuperar os anos perdidos de baixo crescimento, quando for rompido o isolamento dos neurônios do desenvolvimento. Como já afirmado, o país não precisa inventar nada. Nesse caso específico, basta fazer a versão 2.0 da EMBRAPII. Criada em 2013 como Organização Social do Poder Público Federal, a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial atua por meio de contrato de gestão concebido para induzir a cooperação entre instituições de pesquisa científica e tecnológica e empresas industriais, estimulando a transferência de conhecimentos e a busca de soluções tecnológicas. As Unidades EMBRAPII são constituídas a partir de competências específicas das instituições de pesquisa científica e tecnológica, públicas ou privadas sem fins lucrativos, com experiência comprovada no desenvolvimento de projetos de inovação em parceria com empresas do setor industrial. Atualmente existem 56 unidades credenciadas pela EMBRAPII nos mais diversos setores tecnológicos espalhadas por todo o país.

O que caracteriza os projetos desenvolvidos com a EMBRAPII é a agilidade: a empresa industrial negocia e aprova o projeto diretamente com a Unidade EMBRAPII e o governo mantem um saldo estável de recursos na sua conta bancária definido por ocasião do seu credenciamento. Em apenas 7 anos, alguns deles marcados pela recessão da economia como 2015, foram contratados 1.181 projetos que geraram 430 pedidos de patentes envolvendo 816 empresas representando um valor de R$ 1,6 bilhão, dos quais 32 % foram oriundos do OGU, 18 % das unidades EMBRAPII e 50% das empresas. Para cada R$ 1 de investimento público, as empresas aportaram R$ 1,5 nos projetos. Isso evidencia como o investimento público alavanca aquele das empresas.

Conclusão

A mensagem do PT para 2022 é a de que o Brasil está pronto para crescer e vai crescer se o Estado voltar a investir. Pode e deve fazê-lo mesmo em situação de déficit primário, pois só o crescimento irá trazer o equilíbrio das contas do governo sem cobrar o preço da miséria social e do sucateamento do que restou de infraestrutura pública.

Mas o Brasil precisa aprender a crescer e a investir de maneira mais previsível e estável. E por isso precisa criar uma governança para o investimento público que seja tão sólida quanto aquela que foi inventada para superar os anos de inflação e criar o real. O Governo não precisa gastar tempo e esforço criando instrumentos e entidades para ser capaz de retomar o investimento público. Está tudo pronto de disponível. O que ele precisa fazer é colocar ordem no que existe acabando com redundâncias fazendo com que Estado e setor privado trabalhem juntos numa mesma direção.