Cuba, Olimpíadas e os truques da história

Balseros cubanos

Filippo Grandi, Comissário do Alto Comissariado das Nações Unidas foi Laureado Olímpico, o terceiro da história, título que lhe foi entregue durante a abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Foi a recompensa pela constituição, desenvolvimento e treinamento de uma delegação de atletas refugiados. Nesta delegação, que desfilou sob emoção geral, ao lado de iranianos, sudaneses, congoleses, eritreus, etíopes, sírios e de outros países notoriamente conflagrados, figuram, surpreendentemente, dois cubanos: Fernando Dayan Jorge Enríquez, medalhista de ouro em Tóquio na canoagem, refugiado no México e Ramiro Mora Romero, halterofilista, refugiado na Inglaterra.

A política migratória sempre foi utilizada pelos Estados Unidos – EEUU como arma política, desde que Cuba adotou o socialismo e perfilou ao lado da União Soviética na “Guerra Fria”. Centenas de milhares de cubanos de maior qualificação, além daqueles que foram diretamente prejudicados pela estatização, partiram para os EEUU, estimulados por privilégios migratórios.

Os cubanos emigrados eram conhecidos em Cuba como “gusanos” (vermes) e não podiam voltar à Cuba sequer a passeio. Deixavam em Cuba todos os seus bens, imediatamente apropriados pelo Estado e perdiam automaticamente a cidadania cubana. Sucessivas ondas de emigração, clandestinas ou autorizadas, como aquela do Porto de Mariel, acabaram por fortalecer um grande polo de imigrantes cubanos no Estado da Flórida, com fortes vínculos econômicos, influente na política americana e decisiva na manutenção do impiedoso bloqueio econômico que até hoje pesa sobre Cuba.

O desaparecimento da União Soviética desarticulou a já frágil economia cubana, totalmente estatizada, e mergulhou a ilha em uma interminável e grave crise econômica, agravada pelo injustificável e criminoso bloqueio. A emigração aumentou a tal ponto que os EEUU, pressionados, suspenderam parte dos privilégios migratórios dos cidadãos cubanos que conseguiam entrar no país. O Governo Cubano, por sua vez, suspendeu a exigência do anacrônico e ignominioso “visto de saída” para seus próprios cidadãos, que junto com outras medidas, proibia a emigração e até uma simples visita a um país estrangeiro, levando os cubanos à perigosa emigração clandestina.

Entre outubro de 2022 e maio de 2024, mais de 500.000 cubanos, de uma população total de 11.000.000, emigraram para os EEUU. É uma emigração diferente daquela dos primeiros tempos, que era visceralmente hostil à Revolução e ao socialismo e aliada incondicional ao Governo dos EEUU e a suas manobras contra Cuba. Os novos emigrantes, jovens na sua maioria, fogem da pobreza e da falta de perspectivas. A utopia da revolução internacional, que justificou todos os sacrifícios das gerações anteriores, não os mobiliza mais. E não há como censurá-los por não quererem viver em uma sociedade estagnada, de economia estatizada e dominada por um único partido político, por socialista ou comunista que seja.

O Estado Cubano, leia-se o Partido Comunista de Cuba, reage com lentidão exasperadora aos novos-velhos tempos, sem Guerra Fria e sem revolução socialista à vista. O “visto de saída” durou até 2013 e, apenas em 2021, foram legalizadas as micro e pequenas empresas, que vêm, aos trancos e barrancos, tentando sobreviver às idas e vindas do estamento burocrático. E este ano, finalmente, a Assembleia do Poder Popular está discutindo novas leis de migração e cidadania. Por elas, o cidadão cubano emigrado não perde seus bens no país, mesmo que passe mais de dois anos sem voltar à Cuba. Sua cidadania está garantida, mesmo que resida permanentemente no exterior e novas categorias, como a de cubano “investidor” residente no estrangeiro estão sendo regularizadas. Calcula-se em 1.200.000 o número dos que voltarão a ser cubanos de direito e de fato. Em outras palavras, nascidos em Cuba serão cidadãos cubanos de pleno direito morem onde morarem. O impacto desta medida vai além de uma previsível dolarização da economia: leva à abertura para os emigrantes dos canais de participação na política interna de Cuba e, principalmente, abre possibilidade de mudança da atitude da imigração cubana, que pode deixar de ser a garantidora do bloqueio.

É um passo importantíssimo para se superar de vez a situação imposta a Cuba pelo bloqueio e pelo desaparecimento da sua maior parceira, a União Soviética. Queiramos ou não, o futuro de Cuba tem que ser discutido com os cubanos vivendo no exterior. A emigração cubana, cujo Produto Interno Bruto – PIB já é maior do que o de Cuba, terá de livrar-se dos rançosos combatentes da finada Guerra Fria e colaborar ativamente com a renovação econômica e política de Cuba, renovação que passa necessariamente pelo fim do bloqueio e pela quebra do monopólio político do Partido Comunista de Cuba. Que esta emigração viva na sua imensa maioria no território do arqui-inimigo é mais uma das ironias de que a história é plena.

A permanência em uma posição insustentável, postada na linha de frente de uma guerra que já acabou, traz sofrimentos indizíveis ao povo cubano, de quem não podemos exigir mais sacrifícios em nome de uma revolução que ficou perdida no passado. Quanto a nós, que nos inspiramos e tentamos emular a Revolução Cubana, é bom lembrar que ela foi feita pelo e para o povo cubano e não para servir de bandeira para nossos íntimos ideais socialistas.