Tolerância na política, mais do que uma virtude

Cada indivíduo se separa dos demais por um “tabu de isolamento pessoal” e (…) justamente em suas pequenas diferenças, não obstante a semelhança quanto a todo o resto, se fundamentam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador desenvolver essa ideia e derivar desse “narcisismo das pequenas diferenças” a hostilidade que, em todos os vínculos humanos, observamos lutar com êxito contra os sentimentos de solidariedade e sobrepujar o mandamento de amar ao seu próximo.

Sigmund Freud, O Tabu da Virgindade, [1918] 1976: 193

A intolerância e a busca pela tolerância voltaram a estar na ordem do dia. O período eleitoral em 2022 começa com a mesma propagação de mensagens ofensivas e mentirosas, que predominou em 2018. Naquela época, foram o livro de educação sexual exibido de forma distorcida durante entrevista no Jornal Nacional do então candidato Jair Bolsonaro, a divulgação da mamadeira sexualizada, dentre outros factoides. Neste ano, a Ministra Damares fez publicação acusando falsamente o Presidente Lula de fazer apologia de drogas. Empresários publicaram outdoor em prédio no interior de São Paulo listando aberrações sobre o que seriam opinões da ‘esquerda’. Grandes empresários trocaram mensagens que vieram a público defendendo golpe no caso de uma vitória de Lula. Cidadão petista foi morto a tiros durante a comemoração de seu aniversário por um outro declaradamente defensor das ideias bolsonaristas (é possível se falar em ideias dessa natureza?)

Estamos reféns de nossa limitação em compreender como os fundamentos da convivência se deterioraram tão grave e profundamente nos últimos 10 anos, após tantas transformações importantes, e enfrentar essa situação. Ao mesmo tempo, sofremos por também não compreendermos como superaremos esse cenário. Vários de nós depositam piamente suas expectativas no resultado das eleições. Muitos já estamos acompanhados pelo fantasma de como será o dia seguinte. Diante de tanta polarização, da incompreensão do futuro das alianças, do temor de alguma armação, estamos petrificados antecipadamente. Mas a intolerância irá embora após a apuração das urnas?

Certamente, é pouco provável que a intolerância pegue a estrada e desapareça. Ela integra os pilares do mundo da vida e da esfera pública dessa nação ao longo de toda usa trajetória. Acontece que, historicamente, só nos dedicamos a encará-la nos períodos de acirramento. Não conseguimos dedicar atenção para enfrentá-la estruturalmente. Depositamos esperanças de que mais de uma década de políticas inclusivas seria o suficiente. Não foi. Há fortes indicativos de que precisamos avançar em condutas e ações coletivas que recriem as bases da convivência para as gerações que ai estão.

Dedicamos à promoção da participação política do cidadão, mas abrimos mão de torná-la política de estado. Precisamos promover uma vida em sociedade em que a formação de opinião aconteça para além das redes sociais, dos jornais e canais de TV. A implementação de uma iniciativa humanista intensa e estruturada na educação para além da agenda sindical, a disseminação da ação governamental alicerçada na participação direta, programas de formação para a cidadania para crianças e adolescentes, a revisão das leis para desconcentrar os conglomerados de mídia, são algumas de muitas ações, cuja maturação precisará avançar por mais de década pra estabilizar seus resultados. É preciso irmos além das preocupações com a administração do Centrão no Congresso.

Ao longo dessa longa trajetória que temos pela frente, precisamos reconhecer a intolerância como uma condição humana. Não está apenas no outro, na gente também. Não é um problema da direita” ou da “esquerda”. É um problema da sociedade brasileira. A intolerância é uma condição humana que nos deixa racionalmente paralisados pela inexistência de categorias analíticas suficientes para explicá-la ou mesmo administrá-la. Não há quem não saiba identificar uma situação de intolerância, quando seus valores, suas opiniões, suas ideias são rejeitados desproporcionalmente, mas não há quem consiga propor comportamentos para evitá-la ou mesmo convencer o outro à compreensão, a não ser se reduzir ao silêncio ou à abstenção de posicionamento ou ainda à indignação retórica com o estado das coisas.

O fundamento da intolerância está insuperavelmente atrelado à possibilidade socialmente aceitável sob determinadas situações de assassinato do outro como condição para se encerrar uma situação de insatisfação. Vivemos em uma sociedade em que o direito de matar, de tirar a vida de outro, como solução para desentendimentos de todo tipo, como modo de se proteger, como meio para se fazer prevalecer determinada ordem, dentre outras sem número de interpretações de situações da vida, é passível de ser submetido a juízo e ser socialmente validado. O contexto geral valida a radicalização de posições, a manifestação de condutas proporcionalmente virulentas.

Nesta perspectiva, a tolerância não pode ser entendida enquanto uma ‘virtude’, mas enquanto uma habilidade de convivência. Os limites para a identificação e abordagem do outro se definem no exercício da convivência, não a priori. Embora devamos estar sempre orientados pelo princípio universal de reconhecimento da legitimidade de existência do outro, os significados são construídos no mundo da vida e do mundo social. André Comte-Sponville, em seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, ressalta que, “se não se deve tolerar tudo, pois seria destinar a tolerância à sua perda, também não se poderia renunciar a toda e qualquer tolerância para com aqueles que não a respeitam.” A solução para esse dilema só existe no exercício concreto da ação comunicativa. É preciso ter habilidade para se interpretar o sentido das situações e dos interlocutores envolvidos na construção dos significados, para se saber o que merece tolerância e o que não deve ser tolerado. A virtude é por si mesma uma dimensão inata da perfeição humana, que se distancia da natureza experiencial da tolerância, que é a resultante do trânsito compreensivo por entre a diversidade em contextos determinados. Mais do que uma virtude, ser tolerante é uma habilidade possível de ser desenvolvida pelos cidadãos em um contexto de partipação direta na construção da esfera pública.