A sabença do Vicente Nica

Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica
Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica

A efetiva abertura de espaço para a participação política ocorrida no pós-Ditadura Militar possibilitou o surgimento de lideranças populares singulares na história política brasileira.

Aqui em Minas Gerais, o Partido dos Trabalhadores foi o principal caminho e opção que muitas lideranças individuais ou de movimentos organizados encontraram espaço para praticar suas posições na política partidária.

E essa abertura, seja a originada pela efervescência política após duas décadas de censura, tortura, exílio e morte de milhares de brasileiros, seja aquela proporcionada pelo movimento de criação de um Partido dos Trabalhadores, fizeram especial aquele período histórico.

Minas Gerais, pela sua amplitude territorial, cultural e étnica, fez valer fortemente esta diversidade no movimento de “refundação” dos tradicionais partidos de esquerda e, em especial, na constituição do inusitado Partido dos Trabalhadores.

Como estamos atravessando novamente um momento de dificílima travessia para recuperar a alegria, a esperança e mesmo um pouco de utopia para o exercício pleno da atividade política, cabe neste espaço contar uma pequena passagem que alguns mais veteranos vivenciaram com o saudoso Vicente Nica.

Nica era um pequeno agricultor e liderança camponesa no Vale do Jequitinhonha. Em tempos em que a monocultura do eucalipto e sua milícia de grileiros se alastravam pelo Vale do Jequitinhonha, ele despontou na luta para preservar sua roça e de outros pequenos agricultores. Morava num grotão da cidade de Turmalina, chamado grota do Barreiro. Corria o início da década de 1980 e sua militância, como liderança no Vale, ganhou consistência quando de sua aproximação com os fortes e consistentes movimentos da igreja Católica, à época focados na defesa dos mais necessitados.

Lideranças como o Vicente Nica, “seu” Joaquim de Oliveira (de quem já tratamos aqui em outro artigo) e tantos outros originários nas lutas populares de base foram oxigênio para o fortalecimento político da esquerda à época. E já que falamos da presença da igreja, ambos professavam fortemente suas crenças religiosas. Fato curioso era que o Nica era Pentecostal e tinha uma rusgazinha de leve com o “seu” Joaquim, candidato a senador pelo PT em 1982, que era da igreja Batista. Isso acarretava entre os dois algumas discussões do outro mundo, se é que vocês me entendem!

Nas eleições de 1982, a coragem, firmeza política, astúcia e inteligência inata do Vicente Nica, emolduradas pela sua tradicional sandália de dedos e indumentária de homem simples do campo, carrearam a simpatia de centenas de militantes do meio estudantil e universitário em BH. E o Nica foi convencido e aceitou a se candidatar a deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores nas eleições de 1982.

Nas suas vindas de Turmalina a BH para buscar orientação política e material gráfico para a campanha, costumava se hospedar na casa de Sandra Starling, que disputava o cargo de governadora. E numa dessas vindas, coincidiu de estar palestrando na UFMG a filósofa Marilena Chauí, à época a grande referência da filosofia brasileira para os militantes de esquerda. E o Nica foi assistir a palestra “para pegar subsídios para a campanha”. O certo é que, ao final do debate acadêmico, existia muita curiosidade dos seus apoiadores em saber sua opinião sobre as falas da Chauí. E o Nica não decepcionou, ao dar uma resposta concisa e precisa: –

“Éh! Essa moça tem muita sabença mas pouca vivença”.  

Sandra Starling tinha o Vicente Nica em alta conta, mas contava este acontecido de forma diferente. Dizia que a resposta do Nica foi mais elaborada, afirmando que a moça tinha muita mentalidade, mas pouca realidade.

O certo é que o Vicente obteve uma expressiva votação eleitoral para os padrões partidários da época, conseguindo cinco mil votos que ajudaram a consolidar sua liderança entre os trabalhadores rurais do Vale do Jequitinhonha.

A liderança deste importante representante dos pequenos agricultores do Vale do Jequitinhonha motivou a criação, em 1994 na cidade de Turmalina, do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica – CAV, por iniciativa do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Turmalina apoiados pela Igreja Católica e Organizações Não Governamentais. Vicente Nica morreu em 1993, pouco antes da inauguração do Centro que leva o seu nome.