Da Guaicurus para o Bonfim

Existem muitas vantagens em ser militante político não sectário. E uma delas é a de ampliar as possibilidades de conhecer um pouco mais esta multifacetada fauna humana que transita no mundo da política. Foi exercendo essa “amplitude crítica” que conheci muita gente interessante nesse métier.

Entre esses, cultivei com prazer duas décadas de amizade com o Dr. Sebastião Pinheiro Chagas. Advogado, esportista (campeão mineiro, brasileiro e sulamericano de vôlei pelo Minas Tênis Clube), Vereador em Poços de Caldas, deputado estadual, Presidente da Arena-MG, Prefeito Municipal de Poços, escritor, poeta de botequim pois boêmio vocacionado, e um talentoso contador de todas as histórias (a maioria impublicáveis, como quase todas as boas histórias). E vejam só: eleitor, por duas vezes, e admirador do nosso Luiz Inácio Lula da Silva, por considerá-lo “o último grande político e estadista brasileiro”. Em Poços de Caldas, era conhecido pelo apelido de “Basquá”, de origem não sabida. Morreu em 2017, ativo, versado e conversado, aos 99 anos.

Numa de nossas últimas conversas biriteiras, em suas vindas a BH, tirou da carteira e me entregou um papel que carregava embolado na carteira, e disse:

Frequentei muito bordel e botequim, escrevi muita poesia, mas o que está escrito neste papel foi minha grande homenagem às moças da Rua Guaicurus.

Segue a transcrição, ficando como minha homenagem ao “Basquá”:  

Morreu a mais ilustre puta da rua Guaicurus.

Depois de nos servir a todos com presteza e galhardia, ela parte para merecido conforto. Deputados, muitos; senadores? Não me lembro. Governador, sim! Nome não digo, pois sou homem da política e esta exige prudência e respeito – comerciantes, casados de conveniência e devotos do santíssimo sacramento, padres, e até pederastas tentando conversão utilizaram de seus acalentados préstimos. Porém, chegou o seu dia. Já não oficiava mais na profissão, mas conduzia com sabedoria a iniciação das mocinhas que a procuravam no seu refúgio.

Para não contrariar as escrituras, a primeira coisa que me veio à cabeça, quando me chegou a notícia de seu passamento, foi o dito bíblico:

“Dia de ira aquele dia, quando tudo será cinza fria”.

Ora! Mas temos que enterrar a puta!

Corri atrás de amigos, políticos, comerciantes endinheirados e outros que na sua companhia recobraram a estima do macho e o viço da alma. Ninguém se lembrava dela!? – Quem mesmo? Fingiam outros!

Pois fui até a funerária e encomendei o enterro. Fui até um bar e ensaiei discurso solitário. Divino conhaque (!) que nos liberta a alma. Fui à Rua do Comércio (Guaicurus) e, pelos préstimos da vizinhança, encontrei o telefone do ilustre filho da Puta. Doutor dentista, formado e bem de vida em São Paulo. Teimei com a mocinha da telefônica até encontrá-lo. E o putinho apaulistado fez que não entendia o que eu dizia:

 – Sua mãe morreu hoje em Belo Horizonte.

Encurtei o recado:

– Sua honrada mãe será enterrada hoje, às 17h, no Cemitério do Bonfim, rua Timburi com Mariana. Que a terra lhe seja leve!

O puto desligou e não apareceu.

Velório minguado e sepultamento simples. Algumas colegas apareceram – gente que ganha a vida no labirinto noturno que se estende da Rua do Comércio, passa por Lagoinha e se estende até o Bonfim. Porém, antes de romper os sete palmos abaixo, pedi silêncio à seleta plateia e não a deixei sem testamento.

À beira do báratro não deixei por menos.

– Morreu a Puta! Parte desta vida coberta de honradez e dignidade. Criou um filho e lhe fez doutor. Único erro cometido em sua longa vida, dedicada a servir aos homens, inclusive a esse rebento. Mas entre tantos que ela serviu e ajudou, jamais poderia imaginar que as putas quando morrem vão para o céu, o que sinceramente espero que nunca ocorra com esse filho da Puta que ela pôs no mundo. Descanse em Paz!”