31 de março de 24: o início de uma nova era na política

A declaração do Presidente Lula sobre as manifestações no 31 de março desse ano introduz uma nova narrativa sobre a trajetória do Golpe de 64. O Golpe faz “parte do passado” e precisamos tocar o país para frente.

Todo ano, o Golpe que instituiu a Ditadura Militar, que durou 21 anos, é lembrado no dia 31 de março, data em que os militares tomaram o poder. Oficialmente, considera-se que a Ditadura se encerrou em 15 de março de 1985, com a tomada de posse do então vice-Presidente José Sarney, no lugar de Tancredo Neves, Presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, que, internado na véspera da posse, viria falecer em 21 de abril.

Ninguém comemora o 15 de março como o fim da Ditadura, tal como acontece, por exemplo, em Portugal no 25 de abril, data que assinala o fim da Ditadura de Salazar com a Revolução dos Cravos, que, aliás, celebra, em 2024 50 anos. O fim da Ditadura no Brasil foi resultado de uma “transição controlada”. O movimento das Direta-Já foi a luta popular, que tentou promover a eleição direta para Presidente para pôr fim aos sucessivos governos militares. A Emenda Dante de Oliveira (PEC nº 05/1983), que viabilizaria essa alternativa, foi derrotada em 1984, o que levou à escolha de um presidente civil por meio de eleições indiretas, conforme as regras do então Presidente Gen. João Batista Figueiredo.

No campo popular, o dia 31 de março se destina a relembrar as violações dos direitos durante o período militar e cobrar responsabilizações. A Ditadura não apenas proibiu eleições diretas para os cargos majoritários (Presidente, Governador e Prefeitos) e criou áreas de Segurança Nacional. Censurou rádio, televisão e jornais, inúmeros artistas e produções artísticas. Perseguiu e torturou centenas de cidadãos. Segundo a Comissão Nacional da Verdade – CNV, no período, ocorreram 434 vítimas fatais do período, sendo 191 os mortos, 210 os desaparecidos e 33 os desaparecidos cujos corpos tiveram seu paradeiro posteriormente localizado. Além disso, 6.591 militares do Exército, Marinha, Aeronáutica e Forças Policiais foram perseguidos. 8.350 indígenas foram mortos durante o período ditatorial.

No campo da direita, a data é celebrada como episódio que evitou que o país fosse tomado por “forças totalitárias” e restaurou “a paz, a liberdade e a democracia”. Na ordem do dia em alusão a 31 de março publicada em 2022, o então Ministro da Defesa, General Walter Braga Neto, afirma, na contramão dos fatos, que, em conjunto com vários segmentos da sociedade brasileira, as Forças Armadas “aliaram-se, reagiram e mobilizaram-se nas ruas, para restabelecer a ordem e para impedir que um regime totalitário fosse implantado no Brasil, por grupos que propagavam promessas falaciosas”, observando “estritamente, o regramento constitucional, na defesa da Nação e no serviço ao seu verdadeiro soberano – o Povo brasileiro.”

Passados 39 anos do fim oficial da Ditadura Militar, posições tão antagônicas, divergentes continuam a disputar a narrativa sobre a natureza desse período. Na verdade, a sociedade brasileira nunca avaliou de forma oficial e sistemática a natureza desse período. Nenhum dos atos dos governos daquele período e de seus agentes foram formalmente contestados, julgados. Muitos fatores envolvendo uma sociedade traumatizada pelos medos daquele período, assim como a permanência ativa nos anos seguintes na esfera pública de todos os agentes públicos que viveram, conviveram e aceitaram o ambiente institucional da Ditadura, devem ser considerados para entendermos por que não houve uma acareação dos fatos daquele período. Alguns fatores objetivos, contudo, ajudam a entender essa postura como a aprovação da Lei de Anistia (Lei nº 6683/79) e o culto de um suposto papel dos militares no âmbito do Estado Democrático de Direito.

Ainda no período da Ditadura, no início da fase que ficou conhecida de “transição lenta e gradual”, a Lei da Anistia tornou impunes agentes da repressão que cometeram torturas, assassinatos e desaparecimentos de presos políticos entre 1969 e 1979 no contexto de permitir o retorno ao país, à vida pública de um contingente de militantes que atuaram contra os governos militares de várias formas, inclusive pela via armada. Essa institucionalização arrefeceu as iniciativas de contestação dos atos praticados pelos militares nos anos seguintes.

A Lei da Anistia, por sua vez, foi sempre questionada, principalmente em razão da tortura não se tratar de um crime comum e ser considerada imprescritível pela Constituição Brasileira. Em 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB apresentou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF de nº 153, pretendendo que o Supremo Tribunal Federal – STF anulasse o perdão dado aos representantes do Estado (policiais e militares) acusados de praticar atos de tortura durante os governos militares, foi considerada improcedente por 7 votos a 2. Em 2014, o Partido Socialismo e Liberdade – PSOL apresentou a ADPF nº 320 pedindo “nova interpretação da Lei da Anistia, pois ela assegura a impunidade dos crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes da ditadura militar”, o que está “em absoluto desacordo com os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário”, de acordo com Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog. Em fevereiro desse ano, o Ministro Dias Toffoli, que assumiu a relatoria da ADPF 320, anuncia retomada da discussão com audiências públicas no segundo semestre de 2024. Essa indefinição contribui avivar a lembrança da Ditadura, porque os crimes de seus agentes não foram devidamente julgados.

A narrativa de suposto papel para os militares no contexto da dinâmica político-democrática do país foi construída com apoio no art. 142 da Constituição de 1988, que prestou-se a alimentar distorcidamente, para alguns, sua interpretação. O artigo estabelece que cabe às Forças Armadas, “sob a autoridade suprema do Presidente da República”, prestarem-se “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Neste sentido, grassou a interpretação de um grupo minoritário de políticos e militares de que “as Forças Armadas teriam o poder de se sobrepor a ‘decisões de representantes eleitos pelo povo ou de quaisquer autoridades constitucionais a pretexto de ‘restaurar a ordem’”, o que foi motivo de  contestação expressa por meio de parecer emitido pela Secretaria-Geral da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, em 2020, sob à Presidência do Deputado Rodrigo Maia.

A ideia de atribuir às Forças Armadas um papel de ‘poder moderador’ contou com a interpretação do jurista Ives Gandra Martins, que, embora tentando circunscrever tal papel a finalidades específicas, abstraiu do fato de essas instituições públicas deterem constitucionalmente a atribuição do exercício da força física, o que peremptoriamente veda, na origem, qualquer raciocínio neste sentido do ponto de vista de um Estado Democrático.

De fato, a imagem da Ditadura Militar praticamente manteve-se incólume, desde o seu fim formal em 1985. Iniciativas pontuais no campo popular buscaram avançar na responsabilização dos agentes públicos daquele período. Houve inclusive, a instalação da Comissão Nacional da Verdade em 2015. Na última década, o Ministério Público Federal ingressou com 53 ações criminais pedindo a condenação de agentes que cometeram crimes durante a Ditadura Militar. Ninguém foi punido, à exceção de um ex-delegado de São Paulo que, embora condenado em 1ª instância, teve a decisão revogada em fevereiro. Além disso, as Forças Armadas mantiveram, nos últimos 40 anos, a defesa do episódio e sua celebração oficial no 31 de março sob a narrativa de “revolução democrática de 31 de março de 1964”.

No ano passado, sob o contexto da invasão, o Ministro da Defesa, José Múcio, alertou as tropas que haveria punição em caso de qualquer tipo de celebração da data por militares da ativa, o que incluiu postagens em redes sociais. Na verdade, como destacou, à época, o General Tomás Paiva, Chefe das Forças Armadas, desde 2008, a rotina havia passado a ser de não haver qualquer leitura da ordem do dia sobre a data, o que foi retomado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em 2019, seu primeiro ano de governo.

Em 2024, passamos a ter uma outra novidade. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou e orientou publicamente a seus ministros e a todo o governo que não realizem quaisquer atos, solenidades, discursos ou produzam material em memória dos 60 anos do golpe militar. Em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar no programa É Notícia da Rede TV!, em 27 de fevereiro, Lula disse que prefere não ficar remoendo as consequências do golpe de 1964, porque isso “faz parte do passado” e quer “tocar o país para frente”. Neste contexto, o Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, cancelou evento no Museu da República, em Brasília, que exaltaria a luta de perseguidos pelo regime militar.

O posicionamento despertou várias manifestações indignadas. O ex-presidente do PT, Deputado Rui Falcão (SP) disse discordar da decisão de Lula de vetar qualquer ato alusivo aos 60 anos do golpe, durante comemoração do aniversário do ex-ministro José Dirceu, afirmando que “a gente não pode apagar a memória”, senão “a história se repetirá, como nos atos golpistas de 8 de janeiro”.

A coalizão Pacto pela Democracia, que reúne mais de 200 organizações da sociedade civil, declarou em carta à Secretaria de Comunicação Social, que “é fundamental que o debate sobre o Golpe de 1964 seja realizado” para que “as novas gerações conheçam a história da ditadura militar, seus crimes e violações de direitos humanos, para que possamos fortalecer a democracia brasileira”.

Às vésperas da data, o Deputado Odair Cunha, líder do PT na Câmara, por meio de nota, destaca que “relembrar a ditadura é crucial para evitarmos retrocessos e reafirmarmos nosso compromisso inconteste com a democracia, com os direitos humanos e com o Estado Democrático de Direito e pede “a recriação imediata da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos”.

O raciocínio de que declaração de Lula foi impensada ou ainda que pretende ser conciliadora ou negacionista do que foi o Golpe de 64 é rasteira. Há um complexo de processos legais em curso envolvendo o ex-Presidente Jair Bolsonaro, sua família e um conjunto de militares que ocuparam postos relevantes em seu governo, que deverão culminar inexoravelmente em indiciamentos e condenações dada a robustez de evidências que vêm sendo colhidas. Lula sabe que a evolução esses processos e os atos de 8 de janeiro levarão inexoravelmente ao indiciamento e, certamente, à condenação de militares.

Além do próprio Bolsonaro, estão na mira do STF o Ten. Cel. Mauro Cid pela questão da falsificação do cartão vacina e seu, pai Gen. Lourena Cid, pela venda das joias dadas pelo governo saudita ao governo brasileiro no mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro. O Gen. Braga Neto, ex-Ministro da Defesa, deverá ser indiciado pelas articulações visando a efetivação do golpe que visava contestar o resultado das eleições de 22 e impedir a diplomação de Lula. Além dele, os inquéritos indicam o envolvimento de 18 militares bolsonaristas na trama golpista, dentre eles, o Comandante de Operações Terrestres do Exército – Coter, Gen. Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira. Há ainda o processo da Abin Paralela dirigida pelo Gen. Heleno Nunes, que realizou milhares de escutas ilegais clandestinas de autoridades e políticos no país.

Lula sabe que esses acontecimentos não serão triviais. A efetivação das condenação de qualquer militar colocará em questão a imagem da instituição “Forças Armadas”, ao mesmo tempo em que ativará o descontentamento latente de uma parcela expressiva dessas instituições e da sociedade. Esse fato, o indiciamento e a condenação de algum militar por razões políticas, carrega valor simbólico superior à denúncia das violações de direitos durante a Ditadura.

Como vimos, desde o fim da Ditadura nenhum militar foi responsabilizado judicialmente por sua conduta política. Um acontecimento dessa natureza redefinirá o rumo da narrativa que vem se arrastando há 60 anos sobre a Ditadura Militar, porque vai expor a inadequação e o autoritarismo da participação dos militares na vida política brasileira. Porá fim ao impasse sobre a impunibilidade de atos políticos indevidos perpetrados por militares, independente de uma possível revisão da Lei da Anistia ou de alguma revisão ideológica dos militares sobre o papel dos governos militares.

O indiciamento e a condenação de algum militar de patente relevante e alta exposição pública representarão o início de uma nova era. Lula sabe que é preciso orar e vigiar para que essa situação chegue a pleno e bom termo antes do final de seu mandato! Antes significa antes do período que abrirá a sucessão presidencial.