Reforma política 2: Voto Distrital

Desde a consolidação do Golpe contra a Presidente Dilma Roussef, com a aprovação do impeachment pelo Senado em agosto de 2016, ganhou força, no campo popular, a ideia de eleições diretas já para a Presidência da República, como forma de se recompor o funcionamento do Estado Brasileiro. O processo eleitoral tem por si mesmo o papel de proporcionar o debate e se validar alternativas para construção das soluções entre as diversas representações políticas e a sociedade. Ele é o momento oportuno para se delimitar e pactuar a realização das fundamentais transformações estruturais que o Estado Brasileiro para crescer de modo sustentado, promovendo a inclusão social e o enfrentamento da pobreza, assim como a consolidação da democracia ao longo do século XXI.

3.1. Voto proporcional versus voto distrital extraído de Lemos, Maurício Borges. Um Novo Projeto para o Brasil. São Paulo, 2019

Uma pergunta singela: em quais países do mundo, de porte médio ou grande, estáveis e democráticos, prevalece o sistema proporcional na formação da Câmara Baixa (Câmara dos Deputados)? Se considerarmos que Itália e Espanha são países democráticos, mas instáveis, a resposta seria: nenhum. Nos grandes países da Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália e Japão predominam o sistema distrital ou distrital misto, em que parte da Câmara Baixa é formada pelo critério proporcional. Nos países pequenos da Europa, como a Suécia, funciona muito bem o sistema proporcional, embora com importantes mitigadores, como a cláusula de barreira duplamente aplicada, em nível nacional e sub-regional.

Tratado no Brasil com indisfarçável preconceito, o voto distrital, a despeito de seus inúmeros defeitos, tem uma qualidade essencial: é explicitamente plebiscitário, transparente, em que se opta por um nome e partido em oposição a outros nomes e partidos. Há de forma clara uma escolha do eleitor, boa ou ruim, não importa, caracterizando o fato essencial da democracia. Mesmo Marx, em sua proposta radical de sistema eleitoral do parlamento (o Soviet), caracterizava-o como essencialmente distrital, já que o controle político do deputado eleito deveria (na prática só poderia sê-lo) ter como referência uma determinada base territorial. A qualquer momento, a assembleia distrital poderia convocar, orientar, corrigir ou mesmo demitir seu representante.

3.2. Argumentos contrários ao voto distrital

Na verdade, são pelo menos três os principais argumentos levantados pelos cientistas políticos contra o sistema distrital. 

O primeiro refere-se ao caráter arbitrário do corte territorial para a formação de cada distrito, o que poderia favorecer a sub-representação de algumas regiões em relação a outras, adquirindo contorno conservador, ao dar maior peso relativo a áreas atrasadas de população rarefeita em detrimento das grandes aglomerações urbanas. Esse argumento, válido para o Reino Unido no século XIX, não faz mais sentido na divisão territorial da maioria dos países com sistema distrital. E no Brasil, não mexendo no pacto federativo, que limita o número de deputados do maior estado da Federação (São Paulo) e fixa um número mínimo para os menores, a distribuição dos distritos entre e dentro dos estados deveria ser um assunto do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que alteraria de tempos em tempos a base territorial dos distritos, seguindo a dinâmica populacional.

O segundo argumento refere-se ao caráter paroquial do sistema distrital, o que induziria o deputado distrital a ficar prisioneiro dos assuntos da paróquia em detrimento daqueles de interesse geral do país. Na realidade, não existe nada de mais saudável do que um deputado defender os interesses paroquiais de seu distrito, diferentemente do sistema atual em que um deputado proporcional até utiliza a referência à paróquia para justificar emendas parlamentares esdrúxulas, com objetivos inconfessáveis, já que não possui formal e politicamente uma base territorial de referência à qual deve prestar contas. Além do mais, no sistema distrital, podem muito bem conviver temas paroquiais com outros nacionais, a exemplo da reforma da Previdência, dos direitos trabalhistas ou do sistema tributário. E a população, ao contrário do sistema atual, terá muito maior probabilidade de saber como se posiciona, nessas questões, a priori e a posteriori, o seu deputado distrital.  

A terceira objeção a esse sistema é de fato muito relevante: o sistema distrital, especialmente quando temos por referência os casos típicos dos Estados Unidos e do Reino Unido, tende a convergir para o afunilamento do leque partidário, inclinando-se ao bipartidarismo, com o virtual engessamento das opções políticas para o eleitorado. Entretanto, há saídas já testadas para esse problema, como ilustram os casos alemão e francês: o primeiro optando pelo sistema misto, com metade dos deputados eleitos nos distritos e a outra metade escolhida proporcionalmente (por lista) a partir da votação distrital; o segundo, ao optar pelo distrital puro, embora com votação em dois turnos, na hipótese de o candidato mais votado não conseguir maioria absoluta (50% + 1) dos votos.

Assim, todos os eventuais defeitos do sistema distrital são superáveis, o mesmo não se podendo dizer do sistema proporcional, cuja aptidão é de ser estruturalmente deficiente. Na medida em que o tamanho e as disparidades regionais do país aumentam, torna-se mais difícil mitigar essas falhas, ao passo que no sistema distrital suas qualidades ficam mais visíveis. É pouco dizer que o sistema proporcional, com as mitigações apropriadas, funciona bem na Suécia ou Holanda, ao passo que significa muito afirmar que um país muito pobre, imenso e com grandes disparidades étnicas e regionais, como a Índia, possui estabilidade política e funciona bem com seu sistema distrital.

3.3. O círculo vicioso da pobreza do voto proporcional no Brasil

Aí vem outra pergunta singela: por que uma questão tão polêmica nem sequer foi discutida nas duas constituintes democraticamente eleitas instaladas no Brasil no século passado, a de 1946 e a de 1988? Uma resposta mais geral diria que a cultura brasileira tem uma orientação estrutural a preservar as coisas que não funcionam, tal como analisado por Sérgio Buarque de Holanda – o brasileiro cordial – em seu Raízes do Brasil.[1] Mais precisamente, diríamos que o defeito congênito dessas constituintes é que não foram convocadas como exclusivas, estabelecendo-se, por exemplo, para os parlamentares uma quarentena de alguns anos para participar novamente da atividade política. 

Produziu-se, assim, o círculo vicioso: os deputados, escolhidos pelo sistema proporcional, trataram como um consenso cordial o sistema que os elegeu, espelhado de forma inquestionável nas regras eleitorais definitivas. O deputado constituinte, possuidor de um intangível responsável por sua eleição, o sistema de cabos eleitorais, reproduziu, não apenas referendando o seu próprio mandato, mas perpetuando as regras eleitorais que o favoreciam, tanto em 1946 quanto em 1988. Isso abriu espaço para outro mito: o do consenso nacional a favor do presidencialismo em oposição ao parlamentarismo.


[1] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 220 p.