Fuad, Nunes e Paes ganharam nas urnas, mas perderam na política

As eleições municipais se encerraram no dia 27 de outubro. No campo popular, uma parcela dos eleitores lamentou a derrota eleitoral de seus candidatos. Outros celebraram a derrota da direita radical para a centro-direita, onde seus candidatos não foram competitivos. No fim das contas, o resultado eleitoral geral no conjunto dos municípios foi favorável ao centro e à direita. Neste contexto e apesar dos percalços gerados pelas fake news/notícias falsas, que desorientaram grande parte dos eleitores e instrumentalizaram os que as consideraram iniciativas pertinentes, a legitimidade geral do processo democrático foi alcançada. O instituto do sufrágio funcionou e, via de regra, os que empreenderam os falseamentos eleitorais saíram derrotados. Dentre esses casos, tivemos a derrota do candidato Pablo Marçal-PRTB em São Paulo, que divulgou laudo médico falso contra Guilherme Boulos – PSOL afirmando que esse fazia uso de cocaína, e de Bruno Engler – PL, que tentou caracterizar o candidato Fuad Noman -PSD enquanto pedófilo, a partir de um trecho de seu livro em que descreve a violeta ao de uma criança, além do devido acolhimento pela institucionalidade da contestação dessas irregularidades políticas.

Se o ideal genérico de democracia enquanto processo participação do cidadão na vida pública por meio da escolha de seus representantes foi atingido como preconiza Norberto Bobbio (Dicionário de Política, pp. 675), o mesmo não pode ser dito do ponto de vista da dimensão de legitimidade específica do processo democrático. A legitimidade específica diz respeito às variáveis que qualificam a democracia como um todo. Ela se assenta na pretensão de validade do discurso político, que é forjada a partir da interpretação e crítica pela (o) cidadã (o) das argumentações dos representantes e dos agentes públicos, das prerrogativas que o Estado constituído detém, do discurso e do perfil dos candidatos, da atuação dos governos eleitos, da resultante final da aplicação das normas vigentes do regime, dentre outros aspectos da vida pública. Ou seja, a democracia se legitima não somente por meio do adequado funcionamento dos institutos de escolhas que o sufrágio universal e a dinâmica de decisões do regime político proporcionam, mas também pela julgamento público do modo como todo o processo é exercido e por quem é exercido.

Um dos modos de contestação especificamente da legitimidade democrática durante os processos eleitorais ocorre por meio da indiferença eleitoral. Ela se constitui em uma ação social que se manifesta pela recusa a votar, pela anulação do voto ou pelo voto em branco. Conceitualmente, esse comportamento é tratado como “indiferença”, porque seus protagonistas não estão dispostos a validar o processo eleitoral e seus candidatos. É uma manifestação pública expressa de discordância em relação ao status quo democrático vigente. Representa o questionamento de sua legitimidade, ainda que cada um desses comportamentos apresentem imediatamente significados distintos. Votos nulos geralmente são associados a protesto. Votos em branco são interpretados como indiferença ou desconhecimento. Abstenções são consideradas repúdio aos candidatos, a conteúdos determinados ou ao sistema, ou mesmo apontadas como expressão do comodismo perante o estado das coisas. Entretanto, o impacto desses comportamentos é convergente no sentido de questionar a legitimidade do sistema representativo.

Nesta perspectiva, as eleições em Belorizonte foram palco de expressivo questionamento de sua legitimidade. Fuad Noman ganhou mais votos do que o candidato concorrente, mas perdeu para a rejeição expressa da maioria dos eleitores. Conforme as regras eleitorais, Fuad venceu as eleições com 53,73% (670.574) dos votos válidos, derrotando Bruno Engler, que, obteve 577.537 votos (46,27%). Foram 636.752 de abstenções (31,95%), o maior percentual já registrado na Capital Mineira, 61.885 (4,56%) votos em branco e 46.236  (3,41%) votos nulos.

Contudo, sob a ótica do total do eleitorado, que congrega 1.992.984 cidadãos e cidadãs aptos a votar, o resultado final das eleições pode ser contabilizado de outra maneira, de fato, realista. Neste sentido, Noman recebeu efetivamente 33,64% e Engler, 28,97%. Entre todo o eleitorado, 744.873 eleitores escolheram não escolher qualquer um dos candidatos (abstenções+brancos+nulos), o que representou, então, 37,37% dos votos possíveis. Portanto, estes foram os verdadeiros vencedores das eleições.

O comportamento de indiferença eleitoral não é novidade nas eleições municipais. Aconteceu no primeiro turno das eleições em Belo Horizonte e de diversas cidades brasileiras. Nas eleições municipais de 2024 em todo o Brasil, somente a abstenção atingiu o patamar recorde de 29,25% do eleitorado. Este cenário ocorreu nas duas principais capitais do país, São Paulo e Rio de Janeiro.

Na Capital Paulista, o absenteísmo eleitoral foi o maior nos últimos 40 anos, chegando a 31,54% dos eleitores. Considerando-se o somatório de abstenções, brancos e nulos, o prefeito reeleito Ricardo Nunes – MDB obteve 36,40% (3.393.110) dos votos e Guilherme Boulos – PSOL, 24,93% (2.323.901). Por sua vez, o total de eleitores que se recusou a escolher um candidato (abstenções+brancos+nulos) foi de 3.605.433 eleitores ou 38,67% do eleitorado total. O que significa que a direita e o campo popular perderam, fragorosamente, para o desencanto de uma expressiva parcela de cidadãos e cidadãs.

Na Capital Fluminense, a vitória expressiva de Eduardo Paes – PSD por 61,14% (1.861.856) dos votos derrotando o candidato do ex-presidente Jair Bolsonaro – PL, Alexandre Ramagem – PL, que alcançou 31,15% (948.631) dos votos, escondeu a realidade do desempenho político eleitoral na cidade. Considerando-se o somatório de abstenções, brancos e nulos, Paes teve 37,17% dos votos, Ramagem, 18,94% e o total de eleitores que se recusou a escolher um candidato foi o grande vitorioso como 38,53% (1.930.202) dos votos.

Esse comportamento político vem se intensificando na última década eleitoral, conforme podemos ver a partir dos dados para eleições municipais em Belo Horizonte (Gráfico 2). Nas eleições municipais de  2012 em Belo Horizonte, quando foi eleito Márcio Lacerda – PSB, a abstenção foi de 18,9% do eleitorado, considerando-se a contabilização pelos total de eleitores aptos a votar. Com brancos (4,7%) e nulos (7,4%), a indiferença eleitoral foi de 31,0%. Na eleição de 2016, em que Alexandre Kalil derrotou João Leite no 2° turno, votos nulos (12,0%) apresentaram uma alta e brancos (3,7%) se reduziram. Com a abstenção (22,8%), o total de eleitores que se recusou a escolher atingiu 38,5%. Em 2020, com a eleição de Kalil no 1º turno, nulos (4,9%), brancos (3,0%) e abstenções (29,5%) somaram 37,4, mantendo-se em patamar alto ainda que abaixo do das eleições anteriores.

O comportamento da ‘indiferença eleitoral’ não pode ser resumido apenas a mais uma estatística das eleições. Trata-se de um indicador explícito do desencanto com a vida pública, do afastamento do cidadão da esfera pública. Os eleitores que votam nulo ou em branco expressam diretamente seu descontentamento com as opções eleitorais e o processo eleitoral e a dinâmica do processo democrático. Os que não comparecem expressam sua recusa em participar do processo. Põem, assim, em xeque a legitimidade do ambiente democrático, na medida em que, mesmo tendo se processado adequadamente o rito do sufrágio, essa parcela expressiva de cidadãos implicitamente não reconhece o resultado da escolha, porque entendeu que, dentre os potenciais representantes, nenhum merecia ser escolhido, inclusive o efetivamente escolhido.

Para os partidos do campo popular, essa dimensão do processo eleitoral precisa leva à reflexão de que não basta explicar as derrotas eleitorais apenas pela conjuntura das urnas. Para eles, que sempre apostaram na interação direta com os cidadãos como fundamento da democracia, principalmente em seu mundo da vida e do trabalho, é preciso repensar o efetivo abandono dessa dimensão da participação política. Para enfrentar os desvios das redes sociais, é preciso resgatar a ‘rede povo”, que, no início da redemocratização se apresentou como o diferencial dessas forças políticas, as quais, na trajetória das últimas quatro décadas, acabaram engolidas exclusivamente pela dinâmica da representação parlamentar e da vida na administração pública.