Sobre-endividamento estadual, um problema federativo

A carta divulgada pelo COMSEFAZ – Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal na última quinta-feira, 23 de maio, foi muito oportuna e necessária. O breve e sumário documento, com apenas quatro parágrafos, reivindica a adoção de um programa de assistência financeira pela União que possa atender o conjunto dos estados, observando as especificidades dos problemas fiscais enfrentados por cada um deles individualmente. Assim, a carta do COMSEFAZ recolocou o debate a respeito do sobre-endividamento de alguns governos estaduais no lugar do qual nunca deveria ter sido retirado, ao reiterar a natureza federativa do persistente estrangulamento financeiro dos entes subnacionais.

Essa manifestação pública do COMSEFAZ foi oportuna e necessária, porque, desde, pelo menos, o final do ano passado, o notório sobre-endividamento de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul tem sido tratado como um problema isolado e concentrado apenas nesses quatro estados, não sendo considerado, portanto, uma questão de escala nacional e de caráter federativo. Essa narrativa equivocada e superficial tem como origem fontes difusas, mas ganhou densidade nos meios de comunicação de massa, reverberando no Ministério da Fazenda e arrebatando até mesmo parlamentares e lideranças políticas dos partidos de esquerda, entre os quais o Partido dos Trabalhadores – PT – o que acaba estabelecendo um potente canal de transmissão dessa falsa ideia para todos os âmbitos da estrutura governamental do país (nacional e subnacional).

De fato, quando o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou, em março passado, o primeiro esboço do Programa Juros por Educação, que propõe a redução dos juros incidentes nas dívidas refinanciadas pela União em contrapartida a investimentos estaduais em ensino médio técnico e à federalização de ativos, entre os quais empresas públicas, o material informativo divulgado colocava em destaque que 90% do estoque dos passivos eram detidos por apenas quatro estados (SP, RJ, RS e MG).

Considerando-se apenas a dívida estadual refinanciada pela União ao amparo da Lei nº 9.496/1997 (a mais expressiva e onerosa), o passivo público estadual é bastante concentrado regionalmente. De acordo com dados do Tesouro Nacional, o estoque dessa dívida somou R$ 585,9 bilhões em 2023, sendo que 94% eram de responsabilidade dos estados do Sudeste e do Sul e 89% correspondiam aos passivos do G-4 (SP, RJ, RS e MG). Assim, as estatísticas parecem corroborar a ideia persuasiva de que o problema do endividamento estadual, passados três decênios da implementação das grandes operações de refinanciamento patrocinadas pela União no início da década de 1990, já não são mais um problema nacional de ordem federativa, mas um desequilíbrio restrito apenas a algumas unidades federativas. Mas a consistência dessa persuasiva ideia não resiste a uma análise um pouco mais detalhada. Vejamos a seguir alguns aspectos que, se considerados seriamente, colocam em xeque a visão dominante e evidenciam o caráter estritamente federativo do problema do sobre-endividamento estadual.

Um primeiro aspecto a considerar é que, em todas as federações do mundo, a dívida pública subnacional tende a ser regionalmente concentrada. Os dados disponíveis relativos aos Estados Unidos da América – EUA mostram que, em 2021, apenas dois estados respondiam por cerca de 1/4 do total da dívida pública estadual: Califórnia (12%) e Nova York (14%) – que ocupam a 1ª e

 3ª posição no ranking das economias estaduais da federação americana, respectivamente. Os dez estados mais ricos dos EUA detinham, conjuntamente, algo próximo a 57% do total da dívida pública estadual. No Canadá, a situação não é muito diferente. Ontário e Québec, as duas mais ricas províncias do país, eram responsáveis por passivos que representavam cerca de 30% do total da dívida líquida provincial em 2023. Na Argentina, o mesmo cenário se repete: as duas províncias mais ricas do país, Buenos Aires e Córdoba, respondiam, em 2020, por 54% do estoque do passivo provincial.

O que esses dados evidenciam é que, tanto nas federações mais simétricas em termos socioeconômicos (como EUA e Canadá) quanto nas mais assimétricas (como Brasil e Argentina), a dívida subnacional é regionalmente concentrada. Tal distribuição desigual dos passivos é explicada por uma razão óbvia: de modo geral, são os entes federativos de maior expressão econômica que têm maior capacidade de endividamento junto às instituições financeiras privadas e às agências de fomento públicas e multilaterais, de modo que conseguem realizar mais operações de crédito, acumulando maiores parcelas do passivo público subnacional.

Vale notar que, no caso do Brasil, a desigual distribuição da dívida pública estadual, além de estar condicionada pela escala da economia de cada estado individualmente, foi acentuada pelo regime autoritário inaugurado pelo Golpe de 1964. Para a consecução dos seus projetos econômicos e geopolíticos, o Regime Militar articulou profundamente os estados mais ricos da federação nos Planos de Desenvolvimento Nacional – PND I e II, durante os Governos Médici (1969-1974) e Geisel (1974-1979), mediante vários canais, que induziram e comprometeram o equilíbrio fiscal desses entes subnacionais. Além de apropriar tributos estaduais para prover incentivos às exportações e subsídios a produtos básicos de consumo a fim de controlar a inflação, o Governo Central estimulou o endividamento interno e externo de um conjunto de estados.

Assim, sobretudo os estados de maior expressão econômica acabaram assumindo estruturas orçamentárias desequilibradas e estruturalmente endividadas, herdando um pesado legado fiscal e financeiro, quando os planos de “Brasil Potência” dos militares se esgotaram e entraram em crise nos anos 1980. Em 1981, por exemplo, a dívida pública estadual somava, em moeda da época, 955 bilhões de cruzeiros, o que correspondia a quase 4% do PIB nacional, sendo que parcela de 69% do passivo total era de responsabilidade de São Paulo (34%), Minas Gerais (12%), Rio de Janeiro (13%) e Rio Grande do Sul (10%). Com a crise hiperinflacionária e recessiva dos anos 1980, as contas públicas estaduais entraram virtualmente em colapso, obrigando a União a implementar duas grandes operações de refinanciamento do passivo dos estados no início da década de 1990.

A primeira grande operação de refinanciamento da dívida estadual foi realizada no Governo de Itamar Franco (1992-1994), por meio da Lei nº 8.727/1993. A segunda operação de refinanciamento foi implementada no Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), mediante a Lei nº 9.496/1997. A análise dessas duas operações ajuda a compreender melhor a forte concentração regional dos passivos estaduais.

O refinanciamento realizado ao amparo da Lei nº 8.727/1993 teve como objeto principal os passivos estaduais junto a agências financeiras federais (como o Banco do Brasil), fundos parafiscais nacionais (como o FGTS), bem como obrigações externas garantidas pela União, dentre outras dívidas. Os principais detentores desses passivos eram os estados de menor expressão econômica. Foram refinanciados R$ 4,93 bilhões, sendo que 62% desse estoque era de responsabilidade dos estados do Norte (14%), Nordeste (27%) e Centro-Oeste (21%).

A segunda operação de refinanciamento realizada ao amparo da Lei nº 9.496/1997 teve como objeto principal a dívida mobiliária estadual, o que envolveu igualmente os passivos dos governos estaduais detidos contra seus próprios bancos. Os principais detentores dessa modalidade de passivo eram, obviamente, os estados de maior expressão econômica, pois eles eram os que tinham maior capacidade de endividamento mediante a emissão de títulos junto a investidores privados. Ademais, seus bancos tinham maior capacidade patrimonial para absorver parte crescente desses títulos públicos em seus ativos. O valor contratual refinanciado foi de R$ 98,76 bilhões, sendo que parcela de 92% desse passivo era detida pelos estados do Sudeste (80%) e do Sul (12%).

Essas duas operações de refinanciamento explicam, portanto, a razão da persistência e da continuidade da forte concentração regional dos passivos estaduais refinanciados pela União, após transcorridos três decênios de sua efetivação. Fica evidente que os passivos mais volumosos e onerosos já eram detidos pelos estados de maior expressão econômica da federação. E vale notar que, à época da implementação de tais operações, nenhum ator político e econômico relevante do país ousou questionar a natureza federativa do problema do sobre-endividamento estadual.

No momento atual, além do questionamento falacioso da natureza federativa, outro elemento que torna confuso e inconsistente o debate a respeito do sobre-endividamento estadual consiste na própria ênfase colocada na dívida pública. Na realidade, o sobre-endividamento de alguns estados apenas coloca em evidência uma crise estrutural e prolongada das finanças estaduais determinada pela completa inexistência de bases robustas de financiamento do gasto público subnacional. E essa crise se expressa de modo diferenciado em cada ente federado. Nos estados de maior expressão econômica, pelas razões estruturais e históricas discutidas anteriormente, a crise se manifesta, principalmente (mas não apenas), na trajetória insustentável da dívida púbica. Nos estados de menor expressão econômica, a crise se manifesta, sobretudo, na insuficiência de recursos próprios, na menor autonomia de sustentação de gastos e na crescente dependência de transferências de receitas (obrigatórias e voluntárias).

A despeito da forma de sua manifestação, a crise das finanças estaduais implica em um permanente e duradouro estrangulamento financeiro, que afeta de maneira indiferenciada os estados, sejam eles de maior ou menor expressão econômica. Basta verificar que, em 2023, os estados registraram conjuntamente superávit primário consolidado próximo a R$ 31 bilhões, de acordo com informações do Banco Central. Mas como esse resultado positivo foi insuficiente para cobrir a carga de juros, os estados encerraram o ano com Necessidades de Financiamento positivas, da ordem de R$ 65 bilhões. Cabe notar que 16 estados registraram superávit primário em 2023, enquanto outros 19 apresentaram Necessidades de Financiamento positivas, explicitando, com isso, o caráter financeiro da crise das finanças estaduais. Outros 11 estados registraram déficit primário, indicando a persistência de desequilíbrios fiscais oriundos de fatores não estritamente financeiros. Desse grupo de estados deficitários, nove são do Norte e do Nordeste.

Esses dados são suficientes para evidenciar que a crise das finanças estaduais é generalizada, multifacetada e de natureza predominantemente financeira. Um novo programa de reestruturação das contas públicas estaduais se impõe na agenda nacional e deve ser efetivamente liderado pelo Governo Federal. Tal programa federativo deve ter como premissa básica o entendimento de que o modelo tradicional de refinanciamento de passivos subnacionais, calcado em medidas que restringem (ou até mesmo suprimem) a capacidade de gastos dos entes federados, está completamente esgotado e já supriu evidências demasiadas de sua incapacidade de equacionar o estrangulamento financeiro e o sobre-endividamento dos estados. Um novo modelo de ajuste fiscal e de reestruturação financeira dos estados se faz obrigatório ao país, especialmente neste momento em que a política federal tem sido orientada por objetivos declarados de reconstrução nacional. Essa pretendida e prometida reconstrução nacional será incompleta, para não dizer fracassada, se o federalismo brasileiro também não for reconstituído em novas e vibrantes bases institucionais, orçamentárias e financeiras, de modo a fortalecer a estatalidade das administrações públicas estaduais e, ao mesmo tempo, recriar relações intergovernamentais mais sinérgicas, articuladas e cooperativas.