Política é atividade tensa, mas que se distende nos detalhes que lhe dão oxigenação e até mesmo alguma alegria. O Vale do Aço, tendo Ipatinga como centro político de radiação, já transitou por quase todas as dimensões e tensões da política sindical, partidária e eleitoral. Nas décadas de 1980/90 e até um pouco mais, foi foco de admiração política de muitos e referência para a esquerda, despontando – com justiça, como a principal vitrine mineira do então chamado Modo Petista de Governar. Se hoje, com algum saudosismo, olhamos para Ipatinga e região e enxergamos algo como o Vale das Ilusões Perdidas, temos que ter a sensibilidade de compreender a história e seus ciclos fugazes.
Mas chega de alto filosofar! O que importa mesmo reconhecer é que a política tem muita coisa de loucura e segue mais o andar trôpego dos bêbados que a pretensa retidão dos lúcidos. E se é coisa de doido, ter um Comandante-Geral pra colocar ordem na casa facilita muito.
E Ipatinga teve um, muito especial. Falo do Antônio Júlio, figura miúda, moreno escuro, cabelo bem curto acarapinhado em ondinhas, estatura mais baixa que Napoleão mas com autoridade de um gigante. Figura caricata, porém impoluta. De uma pobreza franciscana (o que lhe era indiferente), calçava sempre conga com admiráveis serzidos feitos pela sua mãe, com quem morava. Roupas simples e coerentes, sempre limpas, salpicadas de remendos dignos e discretos. Não circulava pelas altas esferas do poder regional antes das 10h, já que altas autoridades raramente são encontradas nesse horário.
O nosso (pois me incluía entre seus comandados) Comandante-Geral não destratava a ralé miúda, entendendo esta como porteiros, ascensoristas, secretárias (a quem nunca pedia licença para entrar em gabinetes) e assemelhados. Mas com esses não gastava cumprimento verbal, apenas um leve menear de cabeça ao adentrar repartições onde ia distribuir tarefas e conferir o andamento de ordens pretéritas. Não demorava em seus “despachos”, já que apenas distribuía ordens e tarefas. Tinha mais o que fazer. Não carregava agenda, pasta ou papelório graúdo, por supô-los inúteis, característicos de estafetas. Vez ou outra, muito raro, uma caneta bic e uma folha do tipo A4 dobrada, sempre em branco (o que veio a ser a sua desgraça!).
Tinha sua rotina semanal de despachos com aqueles a quem considerava seus subordinados diretos: o Prefeito Chico Ferramenta (a quem só se referia como Francisco), o diretor-presidente da Usiminas e o gerente regional do Banco do Brasil. Em relação a esse último (que eu achava hierarquicamente inferior a outras autoridades locais), me explicou um dia o Antônio Júlio que lhe dava ordens porque o Banco do Brasil era muito grande, tinha muito dinheiro guardado e estava além do Vale do Aço, por ser um banco do Brasil inteiro. A sabedoria inata tem essas percepções. Quanto a outras autoridades locais dedicava desconcertante desprezo, aí incluídos os vereadores, o delegado, padres e mesmo o comandante do 14º Batalhão de Polícia Militar de Ipatinga. – Com esses não converso. E encerrava o assunto.
Mas para encurtar essa boa lembrança do nosso Comandante-Geral, cabe esclarecer por que uma caneta Bic e um pedaço de papel em branco foram a sua desgraça.
Ocorre que ele tinha verdadeiro ódio do tesoureiro da prefeitura de Ipatinga, o nosso prezado Vicentinho Costa, que deve ter lhe negado acesso a alguma repartição ou informação solicitada. E daí pra frente abateu-se sobre o Antônio Júlio uma ideia fixa:
– Este não fica. Vou demiti-lo.
E tentou por vias transversas, abriu mão de sua estatura hierárquica indo procurar pessoas influentes junto ao prefeito e se rebaixou ao rés do chão indo até a Câmara Municipal tentar um lobby pela demissão do Vicentinho. E mais não fez porque já estava ficando doido.
Mas não desistiu. Resolveu quebrar a rotina semanal de despachos, pegou uma caneta e um papel em branco e foi direto ao Gabinete do Prefeito Chico Ferramenta. A secretária tentou barrar a sua entrada, porque tinha gente em reunião com o alcaide (e também não era dia de sua audiência semanal) e ele deu um atropelo na moça e entrou.
– Prefeito Francisco! O Vicentinho não fica. É para demiti-lo hoje.
O Chico Ferramenta, surpreso, tentou argumentar:
– Mas chefe, não posso demitir assim! Sem motivo, é bom funcionário, precisamos dele.
– São ordens, disse o Antônio Júlio.
Silêncio… Intervalo de segundos em duelo de gigantes, pra quem conhecia os dois!
– Então escreva. Ordens sem fundamento só aceito por escrito e assinada, disse o prefeito Chico Ferramenta.
O nosso Comandante-Geral, que não era de vacilar, vacilou ao ver sua autoridade questionada e certamente ameaçada. Coçou a carapinha, olhou pra baixo, colocou a caneta e o papel no bolso, levantou-se e disse ao Chico:
– Depois conversamos a sós. E saiu.
Ocorre, minhas senhoras e meus senhores, que o Antônio Júlio, nosso Comandante-Geral, era analfabeto! E uma ordem a ser emitida por escrito e assinada lhe obrigou a uma retirada estratégica.
Mas após um sumiço estratégico e pontual, retornou aos despachos e ao comando, já que os grandes comandantes absorvem bem pequenas derrotas pontuais. E quanto à demissão do tesoureiro Vicentinho… não se falou mais nisso!