A alma coletiva: entendendo as tramas do comportamento político

Salvador, Bahia - 16/dez/2015: centrais sindicais, partidos políticos e movimentos sociais a favor da Presidente Dilma Roussef, pedindo que o Deputado Eduardo Cunha deixe a presidência da Câmara dos Deputados

Já se tornou lugar comum apontar que estamos passando por profundas mudanças no planeta e, particularmente, no Brasil. Estamos vivendo transformações do processo de produção capitalista e dos paradigmas iluministas que o justificam desde o século XVIII. De fato, a humanidade está atravessando uma era de mudanças equivalente ao período que levou ao Renascentismo (séculos XIV a XVI), transmutando das referências do teocentrismo para as do antropocentrismo impulsionadas pelo advento da imprensa de Gutenberg (a partir de 1.450), da Reforma Protestante (publicação das Noventa e cinco teses de Martinho Lutero em 1.517), da descoberta do Novos Mundo (a partir de 1.492), dentre muitos outros acontecimentos, ainda sob a espada da Inquisição, que continuaria sua cruel perseguição oficialmente até o século XIX.

Muitos atribuem as transformações de hoje à generalização da rede mundial de computadores (internet) e das redes sociais, que, na verdade, são a ponta do iceberg da profunda metamorfose que o mundo da vida, o mundo do trabalho e a ‘estadosfera’ estão passando com a definitiva proletarização do trabalho intelectual, a digitalização e automação de serviços manuais, a financeirização do processo de produção de riquezas e a globalização econômica. Estes são alguns dos temas sobre o qual precisamos cada vez mais nos debruçar, para conseguirmos destrinchar os cenários que estão se descortinando em todas as esferas da vida.

Mais prosaicamente, temos imediatamente o desafio de compreender a dinâmica das profundas mudanças que o Brasil vem passando desde as eleições de 2014. A herança imediata desses acontecimentos nos encheu de surpresa pela reversão do progresso (por que não?) em termos de desenvolvimento econômico, democratização, inclusão social, consolidação de valores de identidade social que a sociedade brasileira vinha acumulando desde a Abertura no inicio dos anos 80, fruto de uma série de lutas e ações de governos populares nos últimos 40 anos. Evidências diversas se disseminam no período recente gerando a sensação de que estamos voltando à estaca zero, de que o pesadelo vivido durante os ‘anos de chumbo’ voltará a se instalar, de que o futuro será novamente sequestrado.

Para contribuirmos com reflexões que nos ajudem a estabelecer um marco analítico consistente para compreender as transformações em curso, para além do senso comum, iniciamos nessa edição a publicação de interpretações da dinâmica da convivência política e das mutações do capitalismo e da democracia no Brasil nos últimos anos.

Nesta edição, vamos iniciar a abordagem da problemática do comportamento político da sociedade, trazendo uma compilação do pensamento de Sigmund Freud sobre a dinâmica das massas, a partir do ensaio Psicologia de Massas, de 1920, publicado no Brasil em Psicologia de Massas e Análise do Eu e Outros Textos (1920-1923) | Obras Completas Volume 15 (Tradução Paulo César de Souza, Companhia das Letras, 2011/1920).

Freud faz uma detalhada análise da alma coletiva das multidões a partir da análise realizada pelo médico Gustave Le Bron, que propõe, em 1.890, que as multidões não a soma de suas partes individuais, mas uma nova forma de entidade psicológica.

Freud considera que “os fenômenos descritos da alma coletiva foram corretamente observados, mas pode-se reconhecer outras manifestações da formação de massas, atuando em sentido contrário, e que devem conduzir a uma bem mais alta avaliação da alma coletiva”. Na verdade, as afirmações de Le Bron não trazem novidades. Elas “dizem respeito a massas efêmeras, que se juntam rapidamente com indivíduos heterogêneos, por interesse passageiro” e foram feitas sob inspiração das massas revolucionárias, principalmente da grande Revolução Francesa. Ele lembra que “as informações contraditórias se originam da consideração das massas ou associações estáveis, em que os seres humanos passam toda a sua vida, e que tomam corpo nas instituições da sociedade”. As tais massas efêmeras, estudadas por Le Bron, “são como que superpostas a estas, como as ondas curtas, porém altas, sobre os imensos vagalhões” (Freud, 2011:17).

Freud destaca também que Le Bon designa o estado do indivíduo na massa como hipnótico, “mas o contágio e a maior sugestionabilidade, enquanto causas de modificação do indivíduo na massa, não são do mesmo tipo, pois o contágio deve ser também uma manifestação da sugestionabilidade”. Freud ressalta que a melhor maneira de se interpretar tal afirmação é relacionar o contágio ao efeito que os membros isolados da massa exercem uns sobre os outros, enquanto as manifestações de sugestão da massa, equiparadas aos fenômenos de influência hipnótica, remetem a outra fonte. A qual, porém? Ele aponta que, para essa comparação, é preciso estabelecer a pessoa que substitui o hipnotizador para a massa.

No tocante à realização intelectual, Freud ressalta que “continua verdadeiro que as grandes decisões do trabalho do pensamento, as descobertas e soluções de enorme consequência, são possíveis apenas para o indivíduo que trabalha na solidão”. Contudo, é fato que “a alma coletiva é capaz de geniais criações do espírito, como a própria língua demonstra, acima de tudo, e também o canto popular, o folclore etc.” (Freud, 2011:16-17)

A seguir, apresentamos uma resenha das considerações de Freud (pp. 9-16) sobre o comportamento das massas

A importância da análise do comportamento das massas

Se a psicologia que procura as disposições, os impulsos instintuais, os motivos, as intenções do indivíduo nas suas ações e nas relações com os mais próximos tivesse cumprido cabalmente a sua tarefa e tornado transparentes todos esses nexos, depararia subitamente com um problema novo, não resolvido. Teria de explicar o fato surpreendente de que esse indivíduo, que se tornara compreensível para ela, em determinada condição pensa, sente e age de modo completamente distinto do esperado, e esta condição é seu alinhamento numa multidão que adquiriu a característica de uma “massa psicológica”.

O que é a massa

O que é então uma “massa”, de que maneira adquire ela a capacidade de influir tão decisivamente na vida psíquica do indivíduo, e em que consiste a modificação psíquica que ela impõe ao indivíduo? O fato mais singular, numa massa psicológica, é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, sejam semelhantes ou dessemelhantes o seu tipo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o simples fato de se terem transformado em massa os torna possuidores de uma espécie de alma coletiva. Esta alma os faz sentir, pensar e agir de uma forma bem diferente da que cada um sentiria, pensaria e agiria isoladamente. Certas ideias, certos sentimentos aparecem ou se transformam em atos apenas nos indivíduos em massa. A massa psicológica é um ser provisório, composto de elementos heterogêneos que por um instante se soldaram, exatamente como as células de um organismo formam, com a sua reunião, um ser novo que manifesta características bem diferentes daquelas possuídas por cada uma das células.

O indivíduo e a multidão

Os indivíduos da massa mostram características novas, que não possuíam antes. Isso pode ser explicado em razão de três diferentes fatores. O primeiro é que o indivíduo na massa adquire, pelo simples fato do número, um sentimento de poder invencível que lhe permite ceder a instintos que, estando só, ele manteria sob controle. E cederá com tanto mais facilidade a eles, porque, sendo a massa anônima, e por conseguinte irresponsável, desaparece por completo o sentimento de responsabilidade que sempre retém os indivíduos.

Na massa, o indivíduo está sujeito a condições que lhe permitem se livrar das repressões dos seus impulsos instintivos inconscientes. As características aparentemente novas, que ele então apresenta, são justamente as manifestações desse inconsciente, no qual se acha contido, em predisposição, tudo de mau da alma humana. Não é difícil compreendermos o esvaecer da consciência ou do sentimento de responsabilidade nestas circunstâncias, já que o cerne da chamada consciência moral consiste no “medo social”.

O contágio mental

Uma segunda causa, o contágio mental, intervém igualmente para determinar a manifestação de características especiais nas massas e a sua orientação. O contágio é um fenômeno fácil de constatar, mas inexplicável, que é preciso relacionar aos fenômenos de ordem hipnótica que adiante estudaremos. Numa massa, todo sentimento, todo ato é contagioso, e isso a ponto de o indivíduo sacrificar facilmente o seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Eis uma aptidão contrária à sua natureza, de que o homem só se torna capaz enquanto parte de uma massa.

A sugestionabilidade

Uma terceira causa, de longe a mais importante, determina nos indivíduos da massa características especiais, às vezes bastante contrárias às do indivíduo isolado. Refiro-me à sugestionabilidade, de que o contágio mencionado acima é apenas um efeito. Observações atentas parecem provar que o indivíduo, mergulhado há algum tempo no seio de uma massa ativa, logo cai — em consequência de eflúvios que dela emanam, ou por outra causa ainda ignorada — num estado particular, aproximando-se muito do estado de fascinação do hipnotizado nas mãos do hipnotizador. A personalidade consciente se foi, a vontade e o discernimento sumiram. Sentimentos e pensamentos são então orientados no sentido determinado pelo hipnotizador.

Tal é, aproximadamente, o estado de um indivíduo que participa de uma massa. Ele não é mais consciente de seus atos. A influência de uma sugestão o levará, com irresistível impetuosidade, à realização de certos atos. Impetuosidade ainda mais irresistível nas massas que no sujeito hipnotizado, pois a sugestão, sendo a mesma para todos os indivíduos, exacerba-se pela reciprocidade. Evanescimento da personalidade consciente, predominância da personalidade inconsciente, orientação por via de sugestão e de contágio dos sentimentos e das ideias num mesmo sentido, tendência a transformar imediatamente em atos as ideias sugeridas, tais são as principais características do indivíduo na massa. Ele não é mais ele mesmo, mas um autômato cuja vontade se tornou impotente para guiá-lo.

Assim, pelo simples fato de pertencer a uma massa, o homem desce vários degraus na escala na civilização. Isolado, ele era talvez um indivíduo cultivado, na massa é um instintivo, e em consequência um bárbaro. Tem a espontaneidade, a violência, a ferocidade, e também os entusiasmos e os heroísmos dos seres primitivos. Há especialmente a diminuição da capacidade intelectual, experimentada pelo indivíduo que se dissolve na massa.

A alma coletiva

Podemos, então, resumir as características da alma coletiva. A massa é impulsiva, volúvel e excitável. É guiada quase exclusivamente pelo inconsciente. Os impulsos a que obedece podem ser, conforme as circunstâncias, nobres ou cruéis, heróicos ou covardes, mas, de todo modo, são tão imperiosos que nenhum interesse pessoal, nem mesmo o da autopreservação, se faz valer. Nada nela é premeditado. Embora deseje as coisas apaixonadamente, nunca o faz por muito tempo, é incapaz de uma vontade persistente. Não tolera qualquer demora entre o seu desejo e a realização dele. Tem o sentimento da onipotência; a noção do impossível desaparece para o indivíduo na massa.
A massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, o improvável não existe para ela. Pensa em imagens que evocam umas às outras associativamente, como no indivíduo em estado de livre devaneio, e que não têm sua coincidência com a realidade medida por uma instância razoável. Os sentimentos da massa são sempre muito simples e muito exaltados. Ela não conhece dúvida nem incerteza. Ela vai prontamente a extremos; a suspeita exteriorizada se transforma de mediato em certeza indiscutível, um germe de antipatia se torna um ódio selvagem.
Inclinada a todos os extremos, a massa também é excitada apenas por estímulos desmedidos. Quem quiser influir sobre ela, não necessita medir logicamente os argumentos. Deve pintar com as imagens mais fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa.

A moralidade das massas

Ao se reunirem os indivíduos numa massa, todas as inibições individuais caem por terra e todos os instintos cruéis, brutais, destrutivos, que dormitam no ser humano, como vestígios dos primórdios do tempo, são despertados para a livre satisfação instintiva. Mas as massas são também capazes, sob influência da sugestão, de elevadas provas de renúncia, desinteresse, devoção a um ideal. Enquanto a vantagem pessoal, no indivíduo isolado, é quase que o único móvel de ação, nas massas ela raramente predomina. Pode-se falar de uma moralização do indivíduo pela massa. Enquanto a capacidade intelectual da massa está bem abaixo daquela do indivíduo, sua conduta ética tanto pode ultrapassar esse nível como descer bem abaixo dele.
Nas massas, as ideias opostas podem coexistir e suportar umas às outras, sem que resulte um conflito de sua contradição lógica. O mesmo sucede, porém, na vida anímica inconsciente dos indivíduos, das crianças e dos neuróticos, como há muito demonstrou a psicanálise.

As massas e a verdade

A massa está sujeita ao poder verdadeiramente mágico das palavras, que podem provocar as mais terríveis tormentas na sua alma e também apaziguá-las. A razão e os argumentos não sabem lutar contra certas palavras e certas fórmulas. Proferidas com solenidade diante da massa, imediatamente os rostos se tornam respeitosos e as cabeças se inclinam. Muitos as consideram forças da natureza, poderes sobrenaturais.
As massas nunca tiveram a sede da verdade. Requerem ilusões, às quais não podem renunciar. Nelas o irreal tem primazia sobre o real, o que não é verdadeiro as influencia quase tão fortemente quanto o verdadeiro. Elas têm a visível tendência de não fazer distinção entre os dois.
Como a massa não tem dúvidas quanto ao que é verdadeiro ou falso, e tem consciência da sua enorme força, ela é, ao mesmo tempo, intolerante e crente na autoridade. Ela respeita a força, e deixa-se influenciar apenas moderadamente pela bondade, que para ela é uma espécie de fraqueza. O que ela exige de seus heróis é fortaleza, até mesmo violência. Quer ser dominada e oprimida, quer temer os seus senhores. No fundo inteiramente conservadora, tem profunda aversão a todos os progressos e inovações, e ilimitada reverência pela tradição.

O papel do líder

A massa é um rebanho dócil, que não pode jamais viver sem um senhor. Ela tem tamanha sede de obediência, que instintivamente se submete a qualquer um que se apresente como seu senhor.
As necessidades da massa a tornam receptiva o líder. Ele próprio tem de estar fascinado por uma forte crença (numa ideia), para despertar crença na massa. Ele tem de possuir uma vontade forte, imponente, que a massa sem vontade vai aceitar.

A estas ideias, assim como aos líderes, atribui igualmente um poder misterioso, irresistível, que ele chama de “prestígio”. O prestígio é uma espécie de domínio que uma pessoa, uma obra ou uma ideia exerce sobre nós. Paralisa toda a nossa capacidade crítica e nos enche de espanto e respeito. Provocaria um sentimento semelhante ao do fascínio na hipnose.