Primeiro Passo: Garantir o Emprego

A maior riqueza de qualquer país é seu povo, pois é nele que residem a capacidade de transformar através do trabalho recursos naturais em bens e serviços, a inteligência imaginativa que cria e inova e a emoção e afeto da qual emergem o sentimento de solidariedade e a ideia de nação. Apesar de possuir tanta riqueza humana que transborda de energia e vitalidade, o Brasil se deu ao luxo de encerrar o primeiro semestre de 2022 com 12 milhões de pessoas desempregadas, a grande maioria delas de forma involuntária, pois está com vontade, disponibilidade e capacidade de trabalhar. Quanto a sociedade brasileira está perdendo ou deixando de ganhar social e economicamente por aceitar manter ocioso esse enorme estoque do mais importante recurso que possui?

Uma primeira aproximação do custo do desemprego pode ser obtida utilizando-se o conceito da perda de produto[1] estimada através do Produto Interno Bruto que deixa de ser gerado pelo estoque de pessoas desocupadas. De acordo com o IBGE, a população ocupada média durante o ano de 2021 contou com 91,3 milhões de pessoas[2]  e ela produziu um PIB nominal de R$ 8.700 bilhões, equivalente portanto a um per capta por pessoa ocupada de R$ 95.290. Isso implica que, ao manter 12 milhões de trabalhadores sem emprego (desocupados), o Brasil está deixando de aumentar hoje o PIB em aproximadamente R$ 1.143 bilhões a valores de 2021. Uma segunda estimativa do custo do desemprego é obtida empregando-se a Lei de Okun, correlação empírica entre redução do desemprego e aumento do PIB obtida a partir de dados de inúmeros países. Estudos[3] mostram que a redução de 1% na taxa de desemprego resulta no aumento de 1,3 a 2,0 % do PIB. Ou seja, cada um dos atuais 12 milhões de brasileiros desempregados estaria deixando de contribuir com R$ 107.500 a R$ 165.400 para o PIB brasileiro a valores do ano passado. A explicação para o aumento do PIB previsto pela Lei de Okun ser maior que aquele estimado com a perda de produto seria a migração de pessoas desalentadas que se encontram fora da força de trabalho e que passariam a ter uma ocupação à medida que a taxa de desemprego diminui.

Em resumo, o estoque de trabalhadores ociosos significa no Brasil de hoje uma perda entre 12% e 18% do PIB, equivalente a valores entre R$ 95.290 e R$ 165.400 por cada brasileiro e brasileira a quem está sendo negado o direito assegurado no art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”.

Muitas dessas pessoas passaram a fazer parte da fila de 35 milhões de desamparados que no ano passado receberam os R$ 90 bilhões gastos em transferências de renda, migalhas rebatizadas de Auxílio Emergencial, Auxílio Brasil, vale gás e vale daquilo, sobras de uma repartição desigual que alguém fez da riqueza valorizada em R$ 8.700 bilhões produzida pelos 93,5 milhões de cidadãos que tiveram o privilégio de ter uma ocupação. Aliás, essa entidade que repartiu o bolo da riqueza não se esqueceu de destinar R$ 448 bilhões a rentistas, remuneração devida pela confiança que recebeu e pelo favor que lhe prestaram ao comprar títulos da dívida pública brasileira.

Não é tarefa viável entender a racionalidade de um governo, cuja política econômica escolheu pagar 5,15 % do PIB na forma de juros em 2021 e mantém hoje 12 milhões de cidadãos desocupados, matéria-prima que alimenta a degradação humana encontrada todos os dias na delinquência dos jovens que vivem na Cracolândia paulista e nas mortes violentas que ocorrem com frequência no Complexo da Maré carioca, exemplos do brutal ônus social arcado pela população das metrópoles brasileiras. A cegueira da elite, que vem dirigindo o Brasil, confunde a gestão de um país com a administração de uma empresa. Enxerga no salário apenas uma despesa e no trabalho um componente de custo. Ela se recusa a admitir que trabalho é recurso produtivo e salário é renda. Ignora por conveniência interesseira que manter um estoque de pessoas produzindo é muito mais efetivo no combate à inflação do que sustentar um exército de pessoas desocupadas.

Existe alternativa a essa concepção enviesada que só produz desigualdade e pobreza. Mas é preciso ter coragem e inteligência para conhecê-la, pois significa aceitar que a primeira das oportunidades que o Estado deve garantir ao cidadão é a oportunidade de trabalhar, de estar ocupado para ganhar o seu próprio sustento e o de sua família. É através dessa garantia que o Estado promove a inclusão produtiva daqueles vitimados pela lógica dos mercados e se qualifica como executor consistente de uma política social que mereça esse nome. Nunca o setor privado conseguirá oferecer a quantidade de empregos suficientes para absorver todos aqueles que estão involuntariamente desocupados. E não adianta educar e treinar quem se encontra desempregado para ocupar um posto de trabalho que não existe. É preciso aumentar a oferta de emprego e para isso é indispensável que o Estado atue como empregador de última instância, da mesma forma como ele garante o sistema financeiro atuando como credor de última salvação. Além disso, o impacto econômico e o benefício social do gasto do Estado com garantia do emprego são muito superiores quando comparados com a simples transferência de renda, porque, além de criar consumo, esse gasto sustenta a ocupação e é através da ocupação que o ser humano se constrói criando ou reforçando seus laços de coesão social.

Garantir o emprego é tarefa do Estado, porque só ele pode criar o dinheiro usado para pagar salários, da mesma forma como cria a moeda, que garante os depósitos dos correntistas em crises financeiras como aquela que ocorreu em 2008. Ao contrário do que nos fizeram acreditar, o Governo do Brasil não precisa arrecadar impostos antecipadamente para poder dispor dos recursos necessários para remunerar os empregos que decide garantir. Ele pode criar esses recursos imprimindo moeda pois, ao ser convertida em trabalho e salário, essa moeda se transforma imediatamente em Produto Interno Bruto e nele estão contidos os impostos arrecadados pelo Estado.

De acordo com as estimativas apresentadas anteriormente, cada pessoa desocupada deixou de produzir em 2021 um PÌB variando entre R$ 95 mil e R$ 165 mil. Como a carga tributária no ano passado girou em torno de 34% do PIB, o Governo renunciou a impostos entre R$ 32 mil e R$ 56 mil ao manter uma pessoa involuntariamente ociosa. Se o governo tivesse impresso R$ 25 mil para garantir o emprego de um cidadão, ele teria tido um ganho fiscal variando entre R$ 7 mil e R$ 31 mil por cada pessoa adicionalmente ocupada.

Extrapolando ao limite, um Programa de Garantia de Emprego capaz de zerar a taxa de desocupação em 2021 teria custado ao governo 3,99 % PIB, mas teria aumentado o superávit primário de 0,77 % para algo variando entre 1,89 e 5,72 % do PIB. Vale chamar atenção para o fato de que bancar um salário de R$ 25 mil/ano para cada cidadão desempregado teria custado ao governo apenas 77% do que ele gastou com juros da dívida pública em 2021.

Garantir emprego não é a única maneira que o Estado dispõe para reduzir a taxa de desocupação, mas é a mais simples e a que gera efeitos mais imediatos. Fazendo uma analogia com o setor de saúde, o Governo pode aumentar a oportunidade de um cidadão ter acesso à cura de suas doenças gastando dinheiro para ampliar a infraestrutura de hospitais públicos e fornecendo medicamento de graça. Ambos as maneiras de alocar recursos do Estado são importantes para assegurar o direito do cidadão à saúde (aliás, elas são complementares), mas o medicamento é o gasto que produz um efeito mais imediato. E mais importante: à medida que a infraestrutura de saúde pública expande, e a saúde de cada cidadão melhora, menor será necessidade dele receber remédio de graça. Isso também se aplica à Garantia de Emprego, quando associada ao aumento do investimento público em infraestrutura de transporte, energia, habitação etc. À medida em que a atividade econômica do país cresce, a produtividade evolui e os salários aumentam. Menor será o número de pessoas que precisarão recorrer aos empregos garantidos pelo governo para se manterem ocupadas.

Um Programa de Garantia de Empregos não é nada extravagante e pouco difere de um programa de garantia de preços mínimos agrícolas. Algumas de suas principais características[1] são:

  • i) financiamento do Governo Central, mas execução e controle totalmente descentralizada por estados e municípios e em parceria com agentes do terceiro setor como entidades filantrópicas e organizações não governamentais (semelhante ao SUS);
  • ii) coexistência com programas de transferência de renda e adesão voluntária do cidadão involuntariamente desocupado;
  • iii) criação de empregos nas regiões onde se encontram os desempregados exigindo qualificações que a pessoa desocupada já possui (aceitar o desempregado tal como ele é e onde ele está);
  • iv) oferta de postos de trabalhos que não competem com aqueles que o setor privado e o governo estão demandando, preferencialmente nos segmentos ligados ao cuidado das pessoas (creches, asilos, associações de apoio a portadores de deficientes, etc.), ao cuidado da localidade onde se vive (projetos ou mutirões para recuperar moradias e infraestrutura degrada, criação de hortas comunitárias, promoção das artes e cultura, etc.) e ao cuidado do meio ambiente (por exemplo projetos ligados à economia circular);
  • v) oferta de remuneração digna e que pode variar de acordo com a realidade do custo de vida de cada região, mas inferior àquele salário descente pago pelo setor privado (a garantia de emprego protege o cidadão desocupado, absorve a mão-de-obra dispensada pelo setor privado ou que está sendo aviltada de maneira inescrupulosa e não cria pressão sobre o nível de salários);
  • vi) incorporação na garantia ao emprego de ações de qualificação e treinamento de forma a aumentar a produtividade do trabalho da população.

Nos meses que antecedem todas as eleições, o cidadão brasileiro é bombardeado pela propaganda política genérica que promete inclusão social, mais saúde, educação e segurança. Um consenso fácil, que esconde ambiguidade e oculta o engano. A mudança da realidade que está colocando na rua milhões de cidadãos desempregados só virá se a cegueira e a impotência do governo forem superadas. Para isso, a mensagem aqui contida é clara: se quiser, quem governará o Brasil pode acabar com o desemprego sem malabarismos exóticos. E a inciativa que produz os efeitos mais rápidos é fiscalmente viável: instituir a Garantia do Emprego. Precisamos todos juntos fazer do Brasil um país onde viver de trabalhar e produzir é mais vantajoso que viver de renda.

Notas


[1] Employment guarantee schemes: job creation and policy in developing countries and emerging markets / edited by Michael J. Murray and Mathew Forstater; 1ª Ed., Palgrave Macmillan, 2013

[1] Junankar, N. Economics of the Labour Market: Unemployment and the costs of unemployment; Houndmills, Basingstoke, Hampshire; New York, NY; Palgrave Macmillan, 2015.

[2] População com idade acima de 14 anos que exercia atividade profissional (formal ou informal, remunerada ou não) durante pelo menos 1 hora completa na semana de referência da pesquisa. Em média o Brasil registrou em 2021 uma força de trabalho formada por 91.297 mil pessoas ocupadas e 13.889 mil desocupadas (PNAD Contínua do IBGE).

[3] Wen, Y. and Chen, M. (2012). “Okun’s Law: A Meaningful Guide for Monetary Policy?”, Economic SYNOPSES, short essays, and reports on the economic issues of the day, Number 15, Federal Reserve of St. Louis, https://research.stlouisfed.org/publications/es/12/ES_2012-06-08.pdf.