2018: o ano em que a democracia padeceu

Salvador-Bahia, 7 de outubro de 2018: eleitores trocam urnas eletrônicas defeituosas em uma seção eleitoral

Desde o impeachment da Presidente Dilma, os fundamentos da convivência política respeitosa e construtiva em construção desde a redemocratização desmoronaram em todas as esferas: no âmbito das famílias, das relações pessoais, no ambiente midiático, nos espaços da propriamente da política. Uma raiva multipolar, aquele sentimento que se justifica mas não se fundamenta, transbordou da Caixa de Pandora! Analistas de toda natureza (a psicanálise saiu dos consultórios para tentar entender o mundo dos vivos) têm buscado categorias para explicar esse azáfama irracional e, sem dúvida, planetário, sem, porém, conseguir produzir convicções comuns. Estamos todos com raiva de como a vida comum acontece, de como as pessoas se comportam, sobre como funcionam a vida e as autoridades públicas, e isto bastou para as pessoas julgarem e condenarem em um só ato o estado das coisas.

Particularmente, para o país, o ano de 2018 foi especial, porque levou aos extremos o delírio social que vinha (e continua) se desenhando. As pessoas extravasaram sua raiva como pior puderam. Diversos acontecimentos nesse ano marcaram a esfera pública do Brasil e das Minas Gerais em que estamos hoje a viver e foram como que autorizando as pessoas a apontarem ou culpados e os salvadores sem arrependimento. Certamente, foi uma trajetória em que a democracia, entendida simplesmente como ambiente de convivência respeitosa, de debate e validação de ideias de desenvolvimento, foi brutalmente solapada, com a trágica contribuição dos ditos meios de comunicação que, em geral, atuaram para discriminar, espetacularizar e demonizar opiniões, condutas e desvios de conduta, convalidados pelo debate das ‘fake news‘, neologismo moderno para uma velha prática, a saber, difusão de conteúdos falso. O ‘debate construtivo‘, aliás expressão que já passou a estar carregada de caretice , foi substituído pelo direito às manifestações intempestivas, impensadas e irresponsabilizadas de se escrever, gravar, retransmitir aquilo que chega ao encontro do momento e do direito á condenação plenipotenciária dos acontecimentos e condutas.

O ano começou com a prisão do ex-presidente Lula em 07 de abril. Lula foi para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo no dia 05. Lá permaneceu com uma multidão em vigília, enquanto seus advogados tentavam habeas corpus. No sábado, às 20h20, partiu do Aeroporto de Congonhas em avião da Policia Federal-PF para Curitiba, chegando à sede da PF na cidade por volta das 22h30. Ali, ficaria preso por 580 dias até 08 de novembro de 2019, quando foi solto por decisão do Supremo Tribunal Federal-STF. Durante esse período, foi mantida a ‘Vigília’ permanente no local, 24 horas por dia, que gritava ’bom dia’, ’boa tarde’ e ’boa noite, presidente Lula’ por 13 vezes, mantendo acesa a lembrança. Montada em um estacionamento alugado em frente à sede da Polícia Federal, organizada em cinco tendas, a Vigília foi administrada por quatro grupos diferentes: o Movimento dos Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores – CUT, o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB e o Partido dos Trabalhadores.

Minas Gerais: greve e impeachment no contexto de crise financeira

Em Minas Gerais, 2018, começou também sob pressão com o reflexo da crise financeira, que levou ao parcelamento 13° salário em 4 parcelas do exercício anterior. O Governo Pimentel não conseguiu adesão dos bancos para securitização da dívida ativa, que traria receita extraordinária. Além disso, o pagamento mensal antecipado das categorias da segurança pública e saúde em relação às demais categorias, sobretudo educação, ainda que dentro do mesmo mês, levou os sindicatos a aumentarem a tensão.

Professores e servidores da rede estadual de Educação de Minas Gerais entraram em greve a partir 8 de março, gerando um clima de grande grande comoção e desgaste em razão dos benefícios viabilizados pelo Governador Pimentel. A categoria reivindicava o cumprimento do acordo salarial firmado pelo governo em 2015. O acordo previa três atualizações nos salários (2016, 2017 e 2018) além do pagamento de abonos, para que os vencimentos atingissem o piso nacional do magistério definido em lei. A greve durou 42 dias com ataques duríssimos ao Governador. A categoria da educação não quis reconhecer o aumento de 46,75% na remuneração de ingresso do professor em seu governo, que passou de R$ 1.455,30 (jan/15) para R$ 2.135,64 (maio/18), ou o descongelamento de carreiras, fim da figura do subsídio, que impedia a concessão de outros benefícios igualmente criado por Pimentel, ou ainda a nomeação de mais de 60 mil novos profissionais por concurso e aumento de 92% na remuneração média dos diretores efetivos  ativos em seu governo. Os grevistas não quiseram tambem saber da impossibilidade financeira de se atender o pleito da Educação ou mesmo da possibilidade de incursão em crime de responsabilidade por parte do Governador na eventual concessão do aumento, devido à violação dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, alegada pelo governo.

Logo em seguida, em 28 de abril, foi protocolado o pedido impeachment do Governador Pimentel apresentado pelo advogado Marley Marra, que acusava o petista de crime de responsabilidade por atrasar o repasse de recurso para o Legislativo, o Judiciário e as prefeituras mineiras. O deputado Laffayete Andrada (PRB), que presidia a sessão no dia, em razão da ausência do Presidente, deputado Adalclever, leu o texto autorizando a formação da comissão para analisar o assunto. Em 02 de maio, a análise do pedido foi suspensa, mas Adalclever manteve viva a ameaça de reativar o processo pelo seu poder na Casa.

Este episódio teve como pano de fundo o anúncio da candidatura da ex-presidente Dilma ao Senado em Minas Gerais no dia 05 de abril. Como era notório, embora de Belo Horizonte, ela estabeleceu sua vida em Porto Alegre-RS, não tendo qualquer ligação com a vida política no Estado. A decisão foi imposta pela coordenação política do PT, tendo circulado o rumor de que pesquisa apontava estado do Nordeste com melhor expectativa eleitoral para a ex-presidente. A candidatura atingiu em cheio a composição eleitoral que vinha sendo negociada com outros partidos. Com esse cenário e o contexto de pressão crescente dos prefeitos diante dos efeitos da crise financeira do Estado, o deputado Adalclever Lopes – MDB, então Presidente da Assembleia, que vinha sendo importante interlocutor e esperava ser o candidato da aliança ao Senado, afastou-se definitivamente da composição. Apoiou-se no pedido de impeachment para desgastar o Governo. Na sequência, integrou como vice-governador a chapa a Governador do ex-prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda-PSB – o qual se retirou da disputa em 21 de agosto após travar disputa com o comando nacional do seu partido, que fechara acordo com o PT em troca da neutralidade nas eleições presidenciais. Dinate disso, Adalclever lançou-se ele próprio candidato, amargando a quarta colocação com 2,77% dos votos.

Em 21 de agosto, cerca de 500 prefeitos se mobilizaram em protesto contra atrasos de repasses constitucionais do ICMS do Estado para os municípios, de transferências que deixaram de ser feitas para a saúde, do IPVA, do transporte escolar, da Assistência Social e de multas de trânsito, o que, de acordo com a Associação Mineira dos Municípios AMM, alcançava débito de R$ 8,1 bilhões. Com a inviabilização da securitização da dívida e as dificuldades para consumar a abertura do capital da Codemge – Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais, o Governo Pimentel recorreu às retenções, impactando profundamente o fluxo financeiro das prefeituras massivamente dependentes das transferências, com práticas, em muitos casos, de pagamento antecipado no meio do ano de parte do 13° salário, provocando uma grave crise poli no Estado às vésperas das eleições.

O impacto do indiciamento do Presidente Temer

O ano de 2018 já começou carregado de tensão gerada pelos acontecimentos do ano anterior. Em 2016, tivemos o impeachment da Presidente Dilma Roussef, cuja “justificativa formal (para o impeachment) foram as denominadas ‘pedaladas fiscais’ — violação de normas orçamentárias, embora o motivo real tenha sido a perda de sustentação política”, como reconheceu, em 2021, o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, em artigo para a revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Assumiu o vice-presidente Michel Temer que trabalhou intensivamente para viabilizar o afastamento da presidente. Em 26 de junho de 2017, Procurador-geral da República, Rodrigo Janot denunciou o já presidente Temer pelo crime de corrupção passiva, tornando-o o primeiro presidente do país no exercício a ser denunciado por crime comum.

O processo teve início em maio daquele ano, após colaboração premiada firmada por diretores da JBS com o Ministério Público Federal. O empresário Joesley Batista, sócio da JBS, havia gravado diálogo com Temer, divulgado em 17 de maio, no qual relatou uma série de crimes cometidos, tais como o de comprar o silêncio do ex-deputado federal e aliado do então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o de pagar propina a membros do Ministério Público e do Judiciário e o de tentar ter influência no Governo por meio de representantes da gestão federal. Diante dos relatos, Temer nada fez, apenas ouvindo e concordando com a possibilidade de calar Cunha.

Neste contexto de fragilidade politica, até julho de 2018, Temer já havia nomeado 63 ministros, incluindo os interinos. Nas pastas da Justiça, Cultura, Turismo e Transparência, chegou a ter de nomear 4 (quatro) ministros diferentes. Em 05 de julho de 2018, o então Ministro do Trabalho, Helton Yomura, pediu demissão depois de ser alvo da Operação Registro Espúrio, que investigava esquema fraudulento de liberação de registros sindicais.

Atentado contra Bolsonaro define agenda eleitoral

O ambiente da campanha presidencial foi de um realismo surreal. O candidato Deputado Jair Bolsonaro possuía um registro impressionante de impropérios, maledicenças, manifestações e condutas antidemocráticas e reacionárias, inclusive ilegais, colhidos ao longo de sua trajetória política, que se tornaram munição para espetacularização da mídia e conteúdo de seus apoiadores e ficaram desfilando nas redes sociais para nossa indignação. Gerou como contraponto o Movimento Ele Não ou #EleNão, liderado pelas mulheres, com diversas manifestações populares pelo país, motivados pelas declarações misóginas do candidato e também por suas ameaças à democracia, elevando a temperatura dos debates identitários no âmbito das relações pessoais.

Em 25 de agosto de 2018, um vídeo de menos de um minuto uma pessoa apresentava uma mamadeira com bico em formato de pênis e “denunciava” que ela havia sido distribuída pelo Partido dos Trabalhadores-PT pelas creches do Brasil com o suposto objetivo de acabar com a homofobia, tendo quase 3 milhões de visualizações nas primeiras 48 horas.

Em 6 de setembro de 2018, o candidato Jair Bolsonaro sofreu atentado durante um comício em Juiz de Fora-MG. Enquanto era carregado em meio à multidão, Bolsonaro sofreu um golpe de faca na região do abdômen desferido por Adélio Bispo de Oliveira, preso em flagrante pela Polícia Federal. O ataque lesionou a veia mesentérica superior, além do intestino grosso e delgado. Bolsonaro recebeu alta no dia 29 de setembro. Nas semanas seguintes, recusou-se a participar dos debates presidenciais, escolhendo os veículos de comunicação para se relacionar.

Em 16 de setembro, ao vivo de seu leito no Hospital Albert Einstein-São Paulo, Bolsonaro fez um pronunciamento pelo Facebook, que chegou a ter 265 mil espectadores durante minutos. Na live, sugeriu a possibilidade de fraude nos resultados das urnas como parte de um plano para que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pudesse deixar a prisão, onde estava desde abril. Logo em seguida, afirmou que Fernando Haddad, candidato do PT, caso eleito, “assina no mesmo minuto da posse o indulto do Lula”, a quem nomearia para assumir a Casa Civil.

‘Kit gay’: uma das muitas fake news de Bolsonaro

Alguns dias antes, em 28 de agosto, entrevistado durante o Jornal Nacional, o então candidato Jair Bolsonaro mostrou uma publicação que seria parte do denominado ‘kit gay‘, termo pejorativo usado por críticos conservadores para se referir aos materiais produzidos pelo programa ‘“Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra LGTB e Promoção da Cidadania Homossexual” criado em 2004. O título mostrado intitulado ‘Aparelho Sexual e Cia’, cuja capa traz o desenho de um menino de topete loiro olhando assustado para o que tem dentro das próprias calças, nunca foi comprado pelo MEC nem foi incluído no projeto Escola sem Homofobia.

Em 9 de outubro, o presidenciável Bolsonaro, em entrevista à rádio Jovem Pan, retornou ao tema, acusando seu adversário na disputa eleitoral, Fernando Haddad, de ter criado o chamado “kit gay”. O material agora em questão, composto por um caderno e peças impressas e audiovisuais, foi encomendado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados ao Ministério da Educação – MEC e elaborado por um grupo de ONGs especializadas. Quando houve a polêmica sobre o seu conteúdo, em 2011, Haddad estava no comando do MEC, mas a origem do material remonta a 2004, quando Haddad não era Ministro da Educação. Na verdade, a Presidente Dilma viria suspender a produção e distribuição do material, em maio de 2011, apesar dele ter tido sua distribuição aprovada e recomendada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco.

O resultado de uma trajetória

Em 16 de outubro, entre o primeiro e segundo turnos, a Presidente do Tribunal Superior Eleitoral- TSE, Ministra Rosa Weber recebeu ameaça com questionamentos sobre a lisura do processo eleitoral. O texto dizia que Jair Bolsonaro – PSL estaria eleito e haveria revolta popular se as urnas não confirmassem o resultado. “A senhora vai ver o povo na rua e os caminhoneiros parando este Brasil até que tenha novas eleições e com voto impresso”, diz a mensagem. Esse foi mais um de vários episódios que buscaram criar ambiente de desconfiança, que alguns dia antes havia contado com a distribuição de um vídeo fraudulento distribuído pelo vereador do Rio de Janeiro, filho do candidato, Carlos Bolsonaro, que tratava-se, na verdade, de uma montagem em que um suposto eleitor acusava a urna de mostrar Haddad quando o número “1” era pressionado.

Em 28 de outubro, ocorreu o segundo turno de votações. A conjunção dos fluídos de Pandora levou à eleição de Jair Bolsonaro com 57.797.847 votos (55,13%), ficando, em segundo lugar, Fernando Haddad com 47.040.906 votos (44,85%), de um total de 104.838.753 (90,43%) de votos válidos, sendo 2,14% brancos (2.486.593) e 7,43% nulos (8.600.105), com 21,30% (31.371.704) de abstenções.

Em Minas Gerais, foi eleito surpreendentemente o empresário Romeu Zema para Governador pelo Partido Novo. Desconhecido, sem trajetória política, com discurso negacionista da vida pública, desconhecedor dos principais temas sociais, econômicos e políticos do Estado, encontrava-se com cerca de 10% nas pesquisas 10 dias antes do primeiro turno e conquistou o primeiro lugar seguido pelo ex-Governador Antônio Anastasia a quem derrotou no segundo turno com 71,80% dos votos válidos.

Empossado, o Presidente Jair Bolsonaro entregou tudo aquilo que sua trajetória anunciava, que seu comportamento durante a campanha não procurou esconder. Ao longo dos mais de três anos de mandato, provocou instabilidade política e econômica continuamente, agravada pela postura negacionista no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Análise mostra que foram mais de 100 crises, impulsionadas pelo ‘Gabinete do Ódio’ ou por manifestações e decisões extemporâneas e incorretas, que paralisaram negociações comerciais, aumentaram a tensão com o Judiciário e fizeram do governo alvo de críticas e contestações.

Em dezembro de 2019, Lula foi solto. Em 23 de junho de 2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal confirmou em sessão, por 7 votos a  4, a decisão da 2ª Turma que declarou o então Juiz Sérgio Moro suspeito para julgar o ex-presidente Lula no caso do tríplex do Guarujá – SP, gerando a anulação das acusações contra o ex-presidente. Em seguida, foram caindo os demais processos até o último deles em 03 de março de 2022, resultante da investigação da Operação Lava Jato na Justiça por suposto tráfico de influência de Lula na compra de caças Gripen, fabricados na Suécia, destinados à Força Aérea Brasileira-FAB. Quem sabe, como Pandora, que fechou a caixa mantendo em seu interior apenas a esperança, a Divina Providência tenha surgido em terra brasilis para resgatá-la em breve de dentro da caixa da história …


Professores e servidores da rede estadual de Educação de Minas Gerais entraram em greve a partir 8 de março, gerando um clima de grande grande comoção e desgaste em razão dos benefícios viabilizados pelo Governador Pimentel. A categoria reivindicava o cumprimento do acordo salarial firmado pelo governo em 2015. O acordo previa três

Manifestação professores em abril2018 ma Assembleia Legislativa

atualizações nos salários (2016, 2017 e 2018) além do pagamento de abonos, para que os vencimentos7 atingissem o piso nacional do magistério definido em lei. A greve durou 42 dias com ataques duríssimos ao Governador.