Direito à Intolerância: Direito Natural?

Você não nos deu um coração para nos odiarmos e mãos para nos matarmos. Faça que nos ajudemos mutuamente a suportar o fardo de uma vida dolorosa e transitória.
Que as pequenas diferenças entre as roupas que cobrem nossos débeis corpos, entre todas as nossas linguagens insuficientes, entre todos os nossos costumes ridículos, entre todas as nossas leis imperfeitas, entre todas as nossas opiniões sem sentido, entre todas as nossas condições tão desproporcionais aos nossos olhos e tão iguais perante ti; que todas essas pequenas nuances que distinguem os átomos chamados homens não sejam sinais de ódio e perseguição!

Voltaire, Tratado sobre a Tolerância, 1763, Cap XXIII

O direito à liberdade de expressão é proclamado aos quatro ventos como principio estruturante da convivência humana.  Expressar o que pensa da vida e do mundo garante identidade ao indivíduo. De fato, o discurso enquanto manifestação da visão de mundo dá materialidade à racionalidade particular que habita em cada um de nós, àquilo que somos e pretendemos ser. Nós, seres humanos entramos em relação para produzir o necessário à reprodução de nossas vidas e de nossa convivência a partir de argumentos que apresentamos para pormos em movimento as dimensões humanas e do mundo objetivo no sentido e modo que consideramos mais adequados. Acima de tudo, constitui  princípio imprescritível que garante a cada ser humano a possibilidade de manifestar seus juízos de valor para levar adiante seu projeto de vida, promover a defesa e denúncia das irracionalidades, dos abusos, das violações, e também buscar compartilhar convicções. Trata-se de um direito natural de todos homens e mulheres. Quando o direito à livre expressão é exercido para excluir, agredir o outro, difamar e difundir mentiras torna-se intolerância. Não existe o ‘direito à intolerância’.

O filósofo Voltaire aborda esse limite da intolerância, em seu Tratado sobre a Tolerância, publicado em 1.763. Ele escreveu sua obra em resposta ao caso de Jean Calas, acusado injustamente, por razões religiosas, de assassinato de seu filho, que, na verdade, havia se suicidado. Calas era protestante e seu filho havia se convertido ao catolicismo. Sua sentença foi executada em praça pública pelo suplício da roda, com posterior estrangulamento e queima do corpo em fogueira. Mais tarde o caso reaberto e sua família foi reabilitada.

Se a Intolerância pode ser de Direito Natural e de Direito Humano

Direito natural é aquele que a natureza indica a todos os homens. Você cria um filho, ele lhe deve respeito na qualidade de seu pai e reconhecimento na qualidade de seu benfeitor. Você tem direito aos produtos da terra que cultivou com suas próprias mãos. Você fez ou recebeu uma promessa; ela deve ser cumprida.

O direito humano não pode ser fundamentado em nenhum caso senão sobre esse direito da natureza; e o grande princípio, o princípio universal de um e do outro, é o mesmo em toda a terra: “Não faças aos outros o que não queres que te façam”. Ora, não se percebe como, segundo esse princípio, um homem poderia dizer a outro: “Crê no que eu creio e não no que não podes crer; caso contrário, morrerás”. É isso que se diz em Portugal, na Espanha ou em Goa. Atualmente, em alguns outros países, prefere-se dizer: “Crê, ou te odiarei; crê, ou te farei todo o mal que estiver a meu alcance; monstro, se não tens minha religião, então não tens religião nenhuma; terás de ser um motivo de horror para teus vizinhos, tua cidade e tua província”.

Se fosse o direito humano que nos levasse a nos conduzirmos dessa maneira, seria necessário que os japoneses detestassem os chineses, que, por sua vez, execrariam os siameses; estes perseguiriam os habitantes do Ganges, que se lançariam contra os moradores do Indo; um mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que encontrasse; os malabares poderiam matar os persas, que poderiam massacrar os turcos: e todos juntos se lançariam contra os cristãos, se bem que estes vêm de fato devorando uns aos outros há muito tempo.

O direito da intolerância é, portanto, absurdo e bárbaro. É o direito dos tigres, sendo bem mais horrível também, porque os tigres dilaceram com suas presas para comer, enquanto nós nos exterminamos por causa de alguns parágrafos.