O melhor pão com bife da Ditadura

Batalhão do 12º RI Regimento de Infantairia do Exército em Belo Hoirzonte

Na Ditadura, que não existiu, a nuvem espessa do medo infiltrava-se em cada fissura da vida e calibrava cada palavra, cada gesto. Havia o medo grosso da rebeldia militante e o medo fino e corrosivo travando a solidariedade, a alteridade, a diferença, forçando cada um a cada hora optar pelo heroísmo ou pela resignação. Só quem era um agente do medo não era vítima dele. Os pequenos gestos também eram grandes no desafio e na coragem.  

Nos primeiros meses de 1969, ainda havia um certo pudor -logo perdido- em se utilizar as instalações do Exército em torturas e, assim, só depois de bem chacoalhados nas masmorras infectas da Delegacia de Furtos e Roubos, costumávamos circular pelas instalações dos quartéis para a composição dos então chamados IPMs (Inquérito Policial Militar), peça acusatória a ser encaminhada à Justiça Militar.

No vetusto quartel do então 12º Regimento de Infantaria, passamos a ocupar as celas habitualmente utilizadas para prisão dos próprios recrutas, por natureza abertas e em locais da circulação do quartel, já que a exposição fazia parte do castigo. Os novos hóspedes, alçados imediatamente à condição de celebridades, mudaram a rotina do modorrento quartel, exigindo guarda reforçada, preleções sobre o perigo comunista e vigilância severa sobre os “terroristas” ali presos, cujos companheiros a qualquer momento poderiam tentar o seu resgate (o que lamentavelmente não era verdade, registre-se). Apesar disso, eram os próprios soldados conscritos que nos guardavam dia e noite, advertidos de que não dessem conversa, e vigiados eles mesmos pelas rondas dos sargentos e oficiais, que, a intervalos, vinham checar a posição e a atitude dos guardinhas.

Eis que, numa tardezinha de um abril como as de agora , lusco-fusco, vejo chegar pela alameda o Heleno, nosso vizinho no prédio pequeno de classe média baixa onde morávamos, que eu não sabia estar servindo no velho 12RI. Heleno era um adolescente turbulento, jeitão transgressor, sempre às turras com um irmão mais velho irascível e violento, a quem, várias vezes, minha mãe consolou e aconselhou. Vinha sorridente e tranquilo, calção regimental e sem camisa, jeito brejeiro e malemolente de malandro. Saudou com familiaridade os guardas seus colegas e com toda a tranquilidade, destemidamente, foi até a porta da cela, cumprimentou como se nada o antigo vizinho e me deu um pão com bife, o melhor que comi na vida, que ele tinha preparado ou talvez surrupiado do rancho do quartel. Puxou uma conversinha, com toda a pachorra, contou um ou outro caso, sob a vigilância assustada dos seus colegas de farda, despediu-se e se afastou com a mesma pose.

Pode ter pesado na sua corajosa atitude a gratidão à minha mãe, ou a solidariedade a outro fora da lei, ainda mais antigo vizinho. Não interessa e nem saberemos. Heleno seguiu seu caminho na “senda do crime” – crime “comum” no caso – e acabou morto pela polícia. Eu tive um pouco mais de sorte. Apenas isso, um pouco mais de sorte.